Convido pais, parentes, amigos, professores e
vizinhos daqueles que não são ‘convencionais’ sexualmente a uma reflexão
solidária
Na coluna da última quinzena (“Como nossos pais”),
comentei a respeito do impacto negativo que as crenças infundadas e as
expectativas irrealistas podem provocar no desempenho sexual de homens e
mulheres, desencadeando ou exacerbando falhas de ereção, falta de desejo sexual,
dificuldade para o orgasmo, entre outros problemas.
A partir do que lá foi discutido, pode-se imaginar
que — numa proporção bastante ampliada — a nossa ignorância e os mitos sobre
temas sexuais menos pesquisados e pouco elucidados podem ser ainda mais perigosos
e cruéis.
Se, de um lado, a fragilidade dos “disfuncionais”
acirra o deboche da sociedade (a qual os ridiculariza pela performance
deficiente), de outro, o suposto atrevimento dos diferentes, divergentes,
disfóricos, incongruentes sexuais atropela e avilta os “adequados”.
Fui testemunha desse despreparo, quando — no início
dos anos 2000 — comecei a coordenar um serviço psiquiátrico de atendimento a
pessoas com disforia de gênero (as quais, à época, eram conhecidas como
transexuais ou portadoras dos demais transtornos da identidade sexual, de
acordo com a Organização Mundial de Saúde).
O Conselho Federal de Medicina acabara de
normatizar o processo de redesignação sexual, ou seja, o conjunto de
procedimentos que uma equipe multiprofissional (psiquiatras, psicólogos,
endocrinologistas, cirurgiões, assistentes sociais) deveria desenvolver, de
modo sequencial, desde o reconhecimento da possível disforia e sua confirmação,
passando ao acompanhamento psicoterápico, à administração de hormônios, ao
preparo para as cirurgias, à assistência aos familiares e à reinserção social
da pessoa cuja identidade sexual demandara esse conjunto de ações.
Os primeiros transexuais que chegaram ao Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo para viver esse processo
foram os protagonistas de uma história de superação. De início, “causaram”
muito, pois vinham vestidos com roupas femininas, maquiados e de cabelos longos
(os nascidos homens); ou com jaquetões, calças rancheiras, coturnos e bonés (os
nascidos mulheres).
Como chegavam em grupo, em função do horário comum
de atendimento, era impossível não notá-los, não fazer comentários, não
manifestar estranheza, desconforto ou repulsa diante do inusitado.
Essa situação foi perdendo sua força à medida que,
mês após mês, ia se tornando habitual.
Hoje, eles transitam pelo Instituto já inseridos
num cenário de tranquila diversidade. Souberam chegar e mobilizaram
funcionários e outros pacientes da instituição a bem recebê-los.
Mas essa conquista não é geral e está longe de ser,
porque esbarra em questões polêmicas como a causa da disforia de gênero,
defendida por alguns pesquisadores como biológica (genética,
congênita/hormonal), e, por outros, como desenvolvimento-dependente. Nem nisso
ainda há consenso.
A falta de conhecimento sempre gera insegurança. A
insegurança, por sua vez, desencadeia medo. Para nos safarmos do medo e da
insegurança, criamos mitos, que se transmitem como verdades. As falsas verdades
são a base do preconceito e da indignação que excluem e estigmatizam.
Convido à reflexão os pais e familiares, os
professores e amigos, os colegas e vizinhos daqueles que não são
“convencionais”. Vocês são responsáveis pela construção e consolidação de uma
sociedade aberta e justa, menos avessa ao diferente, mais acolhedora. Vocês
foram os escolhidos. Para quê? Para virar o jogo e a retórica; virar a mesa se
for preciso, em defesa da inclusão.
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