quarta-feira, 5 de agosto de 2015

MEMÓRIAS DE UM FOLIÃO





Um dia desses encontrei um velho folião, atrás de um caneco monumental de cerveja lá na barraca do Netinho em Sumé.
Preparando-se para tomar uma bem geladinha?
aguarde o carnaval vem aí. Perguntei puxando uma cadeira.

Ele olhou para mim com ar de espanto!

Carnaval, que carnaval? Para mim o carnaval morreu. Já não se faz carnaval como antigamente e como está, não me interessa, disse melangólico.

Difícil de acreditar. Magro, solteiro, uma voz inconfundível e brincalhão, Marcos Moura, excelente profissional de rádio, sempre foi a própria personificação do carnaval desde garoto, quando metia-se nos cordões de rua, desfilando nas troças, e, já quarentão, viveu o melhor do carnaval. Mas o que gostava mesmo era dos bailes de salão. Ali ele viveu todas as fantasias do carnaval, as do amor e as de cetim. Adora as marchinhas e gaba - se de conhecer todos os grandes sucessos de todos os carnavais.

"Pierrot Apaixonado?" É de 1936, composição de Heitor dos Prazeres e Noel Rosa. "Abre Alas"? Essa de 1899, de Chiquinha Gonzaga. "Mamãe eu quero", de Vicente Paiva e Jararaca, de 1937. " A Cabeleira do Zezé?" João Roberto Kelly e Roberto Faissal, 1964.

E 'Quebra, quebra, Gabiroba'? Agora te peguei, não?
Não foi desta vez. Essa é do folclore mineiro que fez sucesso no carnaval de 1930, com arranjo de Plínio Brito e cantada pelo Coro Colombia.

Marcos Moura é assim. Um sabe-tudo, um vive-tudo.
Vendo-o ali, agora, grisalho, achei que deveria puxar pela nostalgia.
Você tem razão. Não se faz mais carnaval como antigamente. Lembra dos lança-perfumes? Aquelas garrafinhas de vidro com o gatilho aveludado, tão elegante, lembra?
-Coisa de mulher!, rosnou por entre os dentes. Homem mesmo usava aquelas douradas, de metal. Mas nada tinham de romântica só prejudicava a saúde...
- E a decoração, os confetes, as serpentinas, lembra? Os salões pareciam cenários de Hollywood, tentei outra vez.
- Cenários das chanchadas da Atlântida, isso sim, onde sempre acabavam metendo um número de carnaval. Tudo papelão pintado, muito chinfrim.
-E os concursos de fantasias de Clóvis Bornay, lembra?
Aquele luxo de encher os olhos...
-Pura BABAQUICE, FRESCURA.
Não me contive:
Se tudo aquilo era bobagem, por que você fica aí lamentando que não se faz carnaval como antigamente? O que está faltando afinal, no carnaval de hoje?

Ele abriu um sorriso. Amaciou a voz e disse baixinho:
-Sabe o que é que está faltando? Um pouco de libertinagem. A velha libertinagem de antigamente.É isso que não tem mais. Um pouco de pecado na clandestinidade...
-Mas isso é o que não falta agora, com tanta mulher pelada...
-Ah, não é a mesma coisa.É só um monte de tetas, nádegas e coxas remexendo para a televisão. Falta malícia. Sem malícia não tem pecado.Sem pecado não tem graça. Acho que Nelson Rodrigues já disse isso.
Suspirou fundo e depois prosseguiu:
Mas a cula não é do carnaval. Foi o mundo que mudou. Comparado com o que acontece por aí, o carnaval virou festa de beatas. Ouvi dizer que vão convIdar até padres para desfilar. É ou não é o fim?

Enquanto ele falava eu me lembrava das Cinzas de antigamente. Os foliões chegando, um a um, para expiar seus pecados.Ah, que pecados! ainda cheios de confetes e dos suores da carne. Divididos entre Deus e o diabo, eles encontravam no carnaval o tempo da libertinagem consentida, em que tudo era permitido, mas que tinha sua lógica e a sua mecânica e cada um fazia a sua parte, na hora devida.

"Acho que não é só Marcos Moura, que está ficando velho", pensei. Ele olhou para mim e percebeu. Animou, enfim, e chamou o garçom:

-Traz uma dose de WISK  para o meu amigo Ferraz. E traz outra cerveja para  o nostálgico aqui, porque está começando a bater a hora da saudade.

Ferraz Júnior (In memoriam)
Marcos Moura
Sr. CARIRI



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