sábado, 14 de abril de 2018

Pai da urna eletrônica preocupa-se com futuro de sua cria

Giuseppe Janino, da equipe que criou aparelho há 22 anos, vê voto impresso como retrocesso

Fábio Zanini
BRASÍLIA
Entre os aficionados por direito eleitoral, um grupo bastante restrito para dizer o mínimo, o gaúcho Giuseppe Janino, 57, é uma lenda. 
Giuseppe Janino, secretário de Tecnologia do TSE e criador da urna eletrônica, durante entrevista à Folha na sede da corte - Pedro Ladeira/Folhapress
O neto de italianos da Calábria, atual secretário de Tecnologia do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), é o último remanescente ainda na ativa do grupo que criou a urna eletrônica, há 22 anos. 
Tamanha é a intimidade com o aparelho que Janino, chamado nos corredores do TSE de “pai da urna” —título que ele rejeita— recita de cabeça os pormenores técnicos de sua cria, e as mudanças que teve desde que estreou, na eleição municipal de 1996.
O aparelho emagreceu de 12 kg para 9 kg, é cerca de 20% menor e tem autonomia de bateria de 12 horas, 50% a mais do que no início. 
Transportada para 460 mil seções eleitorais pelo país, suporta todo tipo de desafio logístico. “Sobrevive na cabine refrigerada de um avião, no lombo de um jeque ou numa voadeira da Amazônia. Tem que resistir a impacto, salinidade, calor”, diz Janino, que está à frente de uma estrutura com números grandiosos: chefia 300 técnicos, responsáveis por criar 120 processos diferentes e 15 milhões de linhas de código a cada pleito.
Ele repete, orgulhoso, que nunca em mais de duas décadas houve acusação séria de fraude envolvendo o sistema eletrônico de voto. Agora, no entanto, o pai da urna está preocupado. 
Seu invento vem sendo atacado de vários lados, de brizolistas nostálgicos a admiradores de Jair Bolsonaro, passando por peritos da Polícia Federal. 
Suprema humilhação, o aparelho cujo apito ao fim da votação se tornou um símbolo dos dias de eleição terá de suportar a vingança da tecnologia que suplantou há duas décadas: o papel.
Por força de uma mudança na lei eleitoral em 2015, o voto não será mais 100% eletrônico na eleição de outubro. 
Uma pequena impressora acoplada à urna fará uma cópia do voto digitado, que, por trás de um visor, será mostrado ao eleitor. 
Caso esteja tudo ok, essa espécie de recibo será encaminhado a uma urna, para, ao final da votação, ser apurado como se fazia antigamente, com pilhas de papel em cima de mesas. E daí, para ser comparado com o extrato da urna eletrônica.
Por enquanto, a novidade será usada em 5% das urnas, ou cerca de 30 mil aparelhos, a um custo de R$ 57 milhões. A universalização acontecerá na eleição municipal de 2028, isso se a mudança não for derrubada na Justiça, coisa que o TSE está tentando
“Há uma desconfiança generalizada com todas as instituições, e a Justiça Eleitoral não é exceção. Fomos afetados pela propagação de notícias sensacionalistas”, resigna-se.
Para Janino, a suposta boa intenção de garantir a confiabilidade do voto é um desastre. “No momento em que você coloca a mão do homem na apuração, você traz de volta três problemas: lentidão, erro e fraude”.
NINJAS
Janino tinha 35 anos quando passou em primeiro lugar no primeiro concurso para analista de sistemas do TSE, em 1996.
Formado em matemática, sua principal experiência profissional até aquele momento era como controlador de voo durante 11 anos na torre do aeroporto de Brasília, uma profissão que, acima de tudo, exige calma. 
A tranquilidade ainda hoje evidente pesou na hora de selecioná-lo para um projeto que precisava ser tocado com rapidez, precisão e discrição, o da urna eletrônica. “O processo eleitoral no Brasil era algo totalmente desacreditado até então. A apuração levava dias. Foi preciso mitigar a intervenção do homem”.

Tornou-se o representante do TSE numa comissão de cinco pessoas para conceber o projeto: além dele, havia três técnicos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e um do CTA (Centro Técnico da Aeronáutica).
Como na equipe três tinham ascendência japonesa e todos se comportavam de forma meio misteriosa, ganharam o apelido de “Grupo dos Ninjas”.
O primeiro nome do aparelho era “coletor eletrônico de voto”, uma pérola do antimarketing, depois mudado para o mais amigável “urna eletrônica”. 
Após muita discussão, os “ninjas” chegaram a três diretrizes: a engenhoca tinha de ser monobloco (tela, teclado e CPU numa única peça), para facilitar transporte e dificultar sumiço de peças; precisava ser “stand alone”, ou seja, capaz de funcionar autonomamente, sem fontes externas de energia; e tinha de ser fácil de usar.
“Poucas pessoas tinham familiaridade com computador em 1996. Quase ninguém tinha em casa. O teclado então seguiu o mesmo layout do telefone, com a mesma disposição de números”, lembra.
Numa decisão que se tornaria uma polêmica, os criadores da urna resolveram não incluir uma tecla “Anula”, apenas a opção “Branco” —para anular, como se sabe, digita-se um número inexistente. 
“Chegamos à conclusão de que não era necessário, a tecla ‘Branco’ teria o mesmo efeito. E poderia passar uma mensagem de estímulo ao não exercício do voto”.

Para puristas da democracia, no entanto, tolheu-se uma opção do eleitor, o de registrar seu protesto anulando o voto.
 

HACKERS

Se Janino tem um inimigo —ainda que cordial—, é o professor Diego Aranha, especialista em segurança de computadores e criptografia do Instituto de Computação da Unicamp.
Ao longo dos últimos anos, Aranha foi presença constante nos “hackatons”, maratonas de hackers organizadas antes de cada eleição pelo TSE para testar a segurança da urna. Especialistas e hackers voam a Brasília para tentar achar falhas no sistema —e Aranha tem sido um dos mais bem-sucedidos.
Em 2012, sua principal façanha: conseguiu quebrar o sigilo do sistema, identificando a ordem dos votantes numa urna. “O mecanismo de embaralhamento dos votos era infantil”, diz ele.
Mesmo após tanto tempo, problemas permanecem, segundo o professor. “Ter um sistema puramente eletrônico é um risco. Fica tudo na mão de um grupo restrito. Há enorme espaço para fraude, basta uma pessoa se corromper”, acusa.
Ele também tem reparos ao sistema de criptografia, que é o mesmo para todas as urnas. “Quem quebrar a chave criptográfica de uma urna de Porto Alegre acessa uma de João Pessoa, por exemplo”, diz Aranha.
Onde Janino vê problemas, na inclusão de um elemento físico (o papel), Aranha vê solução: “A fraude física deixa testemunhas, a eletrônica não deixa rastros”.
O pai da urna eletrônica, obviamente, pensa o oposto. “Com a cédula, você não precisa mais de inteligência para quebrar um sistema. Apenas habilidade”, diz, fazendo em seguida o gesto de quem coloca um imaginário pedaço de papel no bolso.
O risco de fraude na produção das urnas não existe, segundo Janino. Todo o sistema é desenvolvido pelo TSE, e fabricação, cujo contrato é da empresa alemã Diebold, é acompanhado por técnicos do tribunal.
O cartão de memória que carrega os resultados é protegido por um lacre especial feito pela Casa da Moeda. “É impossível haver violação sem deixar rastros”.
E à dúvida mais óbvia, que este repórter estava pronto para fazer, ele se antecipa: “Ouço muito uma pergunta: se invadem a Nasa e o Pentágono, por que não invadiriam a urna? Simples, porque a urna não está em rede”, diz.

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