sábado, 28 de abril de 2018

ARTIGO DE UM FILHO III

Samuel

                                          SETE ANOS SEM PAPAI
                              UM ORIGINAL SAMUEL SALGADO
Sr. DIOCLÉCIO

Vida. Tempo. Emoção... já se vão sete anos e parece que foi ontem... continua intensa e profunda a dor da sua perda. É dor que não passa. Machuca. Remexe lembranças. Quanta vida passou! Ah! Quanta saudade... toda ela está guardada nas gavetas da memória. Viajo no tempo... E nessa inevitável incursão ao passado, coordeno a imaginação em busca de lugares, momentos, pessoas... cada recordação é uma fatia do tempo. Vai ser sempre assim pelo resto de minha vida. 

E lá vou eu pela estrada do tempo... Inicio a caminhada no ano de 2001. Encontro papai, aos 77 anos de idade, com uma vitalidade física e intelectual de fazer inveja a qualquer pessoa. Cabelos bem alvinhos, olhar tranqüilo, fala mansa e pausada. Sempre cordial, simpático, com gestos largos e semblante sensato. Perfil que demonstra toda a intensidade de sua alma. Nunca o vi de mau humor. Não sei de quem herdei meus arroubos. Provavelmente são recessivos. É a individualidade. Cada um tem seu jeito de ser. Ninguém pode ser igual a outro. Ele entende essas diferenças, aceitando-as e respeitando-as. É do conversar, do ouvir, do orientar. 

Meu pensamento não pára nesse momento da vida de papai e vai encontrá-lo no ano de 1982, participando intensamente da campanha para Prefeito. Orador talentoso. Eloqüente. De estilo combativo e corajoso. Nunca conheceu o medo. Com a invejável experiência de dois mandatos de Vereador e um de Vice-Prefeito, enxerga mais longe e com pragmatismo, alerta: “os adversários de hoje, poderão ser os correligionários de amanhã”. É diferenciado. Inimitável. Diante das adversidades, envolve o tempo e a paciência, considerando o período de 24 horas como uma eternidade. Não guarda mágoas. Não tem ressentimentos. Não tem inimigos. Trata a todos com igualdade. Extremamente humano, naturalmente, divide tudo que é seu... ele é assim... espontâneo... solidário... se envolve... se dá... nasceu para servir. 

A disputa eleitoral deste ano é acirrada, tensa. Duas candidaturas estão postas. De um lado, o candidato do Partido da Frente Liberal (PFL), pertencente ao grupo que está no poder há 20 anos. Do outro lado, os oposicionistas, angustiados com os desmandos administrativos e entusiasmados por uma proposta de mudança, defendida, principalmente, pela participação direta e espontânea da juventude e dos segmentos mais pobres da população, representados por mim, jovem político de apenas 32 anos, filiado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). As concentrações populares, além de alegrarem e movimentarem as manhãs das quartas-feiras e as tardes e noites dos sábados e domingos estão, cada vez mais, impressionando pelo entusiasmo e pela multidão de participantes. Estamos realizando o comício de encerramento na Praça São José, centro da cidade. O povo não arreda o pé. A emoção toma conta de mim e a multidão vai ao delírio quando afirmo que por onde passo, as pessoas me dizem: “voto em você, não apenas por ser o melhor candidato, mas, sobretudo, por ser filho de um homem chamado Deoclécio Cavalcanti”. 

Continuando minha viagem através do imaginário, agora encontro, no ano de 1958, o jovem casal Deoclécio e Luzinete com seus filhos, meus avós, tios e primos, morando na zona rural de Angelim. Sítio Jenipapo... paraíso da minha infância... meu mundo encantado... como é bom acordar com o sussurrar do vento e o trinar uníssono dos pássaros; ficar embevecido com o sabiá soprando sua flauta mágica na copa de uma árvore; ouvir o canto V melodioso do rouxinol; Ver o bem-te-vi, num vôo rasante, comer insetos e dar bicadas num gavião que ameaça seus filhotes; subir nos pés de manga e caju; ouvir os apitos do trem; escutar o soluçar de carros de bois pelas estradas; tomar caldo de cana extraído do engenho capa-bode; saborear tanajuras bem assadinhas misturadas com farinha; rodar carrapeta; jogar pião; armar arapuca; caçar passarinho com peteca (baleadeira) e bodoque; montar em cavalo-de-pau; correr de pés descalços; jogar peteca (bola feita de palha de milho) nas tardes de domingo; saciar a sede com água do pote; tomar café fresquinho pisado no pilão; ouvir a magia sonora das cigarras no suave entardecer do verão; escutar os sapos coaxarem e ver os vaga-lumes salpicarem de estrelas a escuridão da noite; acompanhar atentamente, no rádio à bateria, o Repórter Esso e a novela Jerônimo o herói do sertão; conversar até a hora do sono... essas coisas me encantam. Tudo é tão natural. Tornam a vida leve, sutil, fascinante, infinita. Tudo é plena harmonia. Que tempo bom! 

Esta viagem do pensamento deixa um rastro de saudade. Parte desse tempo que se foi, está perenizada através de fotos. Representa um tempo congelado que pode ser visitado calmamente e recomposto a qualquer instante, minuciosamente, num longo diálogo silencioso. 

Na vida não há retornos, apenas recordações... saudades... muitas saudades! É assim mesmo! Com a suavidade da recordação, tudo está fixado na minha memória e não sai mais. O ontem está repleto de sentimentos cheios de ternura que carrego comigo. Afagar estas lembranças paradas no tempo me faz bem. Remete-me a uma vida que nunca vai terminar. Ao menos enquanto a memória estiver funcionando. Pois então, que a saudade me console. 

SAMUEL SALGADO 
Setembro de 2008

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