Assis. Nessa Cruzada, o calmo e
pequeno bardo de Deus procurou converter não só os muçulmanos,mas também os
cristãos à religião de Cristo. Nessa tentativa veremos que não foi muito feliz.
São Francisco, ou para lhe dar o
seu nome italiano, Francesco Bernardone, desejava imitar avida de Cristo. O que
na realidade conseguiu, porém, foi imitar a vida de Buda, embora seja quase certo
que jamais ouviu falar no profeta hindu. A história de São Francisco apresenta
semelhanças extraordinárias com a biografia de Buda. Ambos renunciaram à vida
de conforto para dividir sua moradia com Dona Pobreza; ambos acusaram a
propriedade privada como a fonte de todo mal; ambos viajaram pelo mundo para
alisar as rugas na testa da humanidade; ambos compreenderam a piedade e a
beleza da vida; ambos consideravam-se, com os outros seres vivos, como
participantes
de uma única cadeia harmoniosa no
poema da criação. Finalmente ambos, quando agonizantes,pediram a seus amigos
que os sepultassem na terra nua, pois ambos sentiam-se felicíssimos quando
estavam o menos possível onerados
de “bens”, isto é, “coisas más” deste mundo.
2
Francisco de Assis era filho de
Pietro Bernardone, próspero negociante de fazendas da
Úmbria. Quando menino, Francisco
era um tanto irrequieto, extravagante, impulsivo, rebelde e
generoso demais. Não tinha noção
do valor do dinheiro. Gastava-o a torto e a direito — geralmente
em prazeres de outrem. Julgava
ser, mais razoável proporcionar a seus amigos horas agradáveis
com o dinheiro de seu pai, do que
vê-lo armazenado no cofre de seu progenitor. Sua mãe, esposa
econômica de um marido ambicioso,
observava freqüentemente com amargura que Francisco agia
como um príncipe e nunca como filho
de um lojista italiano. Quanto ao pai, pensava que o rapaz jamais chegaria a
ser alguém.
Mas se sua mãe e seu pai lhe
mostravam más perspectivas, os jovens de Assis adoravam-no.
Descuidado da própria vida,
quanto o era do dinheiro, esbelto, de olhos negros, brilhante e sempre
alegre, tornou-se o chefe em suas
diversões, suas modas, nas diabruras e nos amores. Semelhante ao
jovem Buda, e ao jovem Tolstoi,
era tido por seus camara
das como um companheiro
excelente.
Durante a adolescência, sua
cidade estava empenhada numa daquelas intermináveis guerras
medievais contra Perúgia, cidade
rival na Itália. O antigo Império Romano fora desmembrado em
numerosos principados
independentes, cada qual constituído de uma cidade provida de muralhas e governada
por um senhor feudal, e, cada um destes, mantendo como feudos perpétuos as
cidades
vizinhas. Os romanos, confiantes
na espada, em seu empenho de unir o mundo, conseguiram apenas
dividi-lo. Suas guerras absurdas
de grande envergadura cederam lugar a pequenas refregas inúteis.
A carnificina em grande escala
fora substituída pela carnificina em pequenas doses. Cada cidade
vivia em antagonismo com as
demais, Veneza contra Florença, Florença contra Assis, Assis contra
Perúgia, Perúgia contra Veneza e
assim por diante, por toda a Europa. Mil pequenos césares tinham
herdado a ambição, mas não a
imaginação do primeiro César. A civilização da Idade Média estava
apodrecendo nos pequeninos e
intermináveis duelos entre as cidades.
Quando Perúgia e Assis iniciaram
um desses ridículos duelos, o jovem e impetuoso Francisco
alistou-se sob a bandeira de sua
cidade natal. Experimentara muitas aventuras de paz e achou-as aseu gosto.
Estava então ansioso por experimentar as aventuras mais excitantes da guerra.
Estas,
porém, não foram de seu agrado.
Em uma das batalhas foi aprisionado e, por mais de um ano, teve oportunidade de
estudar o lado menos sedutor da guerra, mas não o menos selvagem, numa prisão
de guerra medieval. Aí curou-se
do militarismo para o resto da vida.
Quando voltou da prisão, adoeceu
tão gravemente que, durante algum tempo, duvidou-se de que ele recuperasse a
saúde. Venceu a crise e durante a convalescença, deitado no leito, pôde analisar
a vida de um ponto de vista novo. O céu, a terra, os pássaros, as árvores, os
aborrecimentos
e as aflições de seus engraçados
irmãozinhos da raça humana, tudo tomou uma significação diferente, em sua contemplação
exercida de uma posição nova e horizontal de relaxamento tranqüilo. Havia
exagerado empenho por um nada, uma corrida excessiva atrás de coisas
destituídas
de valor, muitas lutas por causas
mais insignificantes ainda. Ali mesmo e naquela hora, resolveu
abandonar a vida tola das pessoas
que o cercavam e levar uma vida razoável.
Assim, recusou-se a voltar ao
exército, quando melhorava de saúde. Seus antigos companheiros começaram a
abandoná-lo, um por um. Consideravam-no como um covarde, uminerte e um
pacifista. Ele, porém, sorria ante seus abusos. Com efeito, “suportou-os como
umacoroa”. Provara a alegria de sofrer por não querer causar sofrimentos a
outrem. Era para ele uma nova experiência e uma nova modalidade de aventura e,
coisa estranha, achou-a de todas asaventuras a mais interessante.
Um dia, galopando pelos campos da
Úmbria, encontrou um leproso pela estrada. Durante toda
a sua vida sentira-se horrorizado
à vista desses cadáveres vivos. Poeta sensível como era, afastava-se sempre de
tudo que era feio, sentindo uma dor quase que corporal. Mas, durante sua
moléstia,ficara muito intimamente associado ao horror do sofrimento e à
fealdade da doença, para sentir algo que não fosse compaixão pelas doenças e
sofrimentos alheios. Quando viu o leproso avançar em sua
direção apeou do cavalo, e não só
lhe deu dinheiro, mas a sua própria pessoa, a seu irmão aflito.
Estreitou-o em seus braços e
falou-lhe como a um amigo e companheiro. Até então encontrara uma
espécie de felicidade tumultuosa
em companhia dos homens felizes. A partir daquele momento
experimentava uma alegria mais
serena, mas muito mais profunda, escolhendo a companhia dos desamparados.
Deixou os bem-afortunados tomarem conta de si próprios e dedicou-se ao serviço dos
destituídos da sorte. Seu coração procurava de preferência os fracassados, os
ineptos e os
deformados, os que não podiam
avançar na vida, os fracos que ninguém queria empregar, os humildes dos quais
ninguém queria se ocupar. “Ele escuta”, diziam a seu respeito, “os que o próprio
Deus não quer escutar.” Sim, e foi mesmo além deste ponto. Embora fosse um
católico devoto,tinha a temeridade de corrigir os enganos do céu, procurando
tornar os homens mais felizes do que
o céu aparentemente pretendia que
o fossem.
Era um católico devoto, porém não
um filho obediente da Igreja. Tampouco era um filho obediente a seu pai.
Procurava fazer tudo a seu modo. Mais depressa obedecia aos ditames do seu
coração que às ordens de seus
superiores, e acontecia que seu coração tinha sempre mais razão do
que seus superiores. Certa vez,
para obter o dinheiro para a execução de um ato de caridade, vendeu seu cavalo
e uma peça de fazenda pertencente à loja de seu pai. Este chamou-o de ladrão e
passou-
lhe um sermão longo, salientando
os sacrifícios dos pais e a ingratidão dos filhos. Ora, tudo que
Francisco possuía, frisou, até
mesmo a roupa que usava, devia à generosidade de seus progenitores.
Francisco então despiu-se e
atirou suas roupas ao rosto do pai. Resolveu não mais depender
da bondade alheia, se fosse
possível — sobretudo quando as pessoas tomavam tantos cuidados
especiais de lembrar a eterna
dívida que fora por ele contraída. Vestindo um manto roto, saiu de casa para a
rua gelada — estava-se no inverno — e, segundo consta, cantando pelo caminho.
Renunciara a toda propriedade e,
como o mendigo da fábula que não tinha camisa, estava extremamente feliz, após
achar-se desembaraçado das cargas de propriedade. Se é verdade que o homem rico
é aquele que está satisfeito com o pouco que tem, Francisco Bernardone foi o
mais rico
dos homens, porque se sentia mais
contente quando possuía menos. Isso não foi uma mera atitude sua, nem tampouco
o desejo de fazer o papel de mártir. São Francisco foi um asceta. Era abnegado nem
tanto pelo amor de Deus, como pelo seu amor ao próximo. Sentia-se realmente
envergonhado
de estar bem, enquanto outros
irmãos seus estavam passando mal, e de comer, quando tantos entre eles estavam
morrendo de fome. Assim sendo, em vez de ir como um eremita acabrunhado para deserto,
andava entre os humildes, os pobres, os doentes, restaurando-lhes a esperança e
o orgulho,
alimentan do os famintos, e
consolando os sofredores. Sua felicidade era imensa, porque ele pensava mui
pouco em si e muito nos outros. Quando recebia alimentos, reservava a menor e a
pior porca para si e distribuía o resto. Quanto à indumentária, envolvia-se,
tanto no verão como no inverno, em sua túnica mar rom, usada, amarrada na
cintura por uma corda. Essa túnica tornou-se o uniforme regular dos franciscanos,
os estranhos soldados de Cristo, que São Francisco conduzia em sua cruzada de
alívio e misericórdia.
3
A princípio conseguiu apenas dois
adeptos. Construíram uma cabana perto da colônia de
leprosos, e serviam de
mensageiros de vida para os que se haviam resignado a uma morte em vida.
Em três anos, o número de franciscanos
— os pequenos ir
mãos de São Francisco — subiu a
doze.
Com Francisco à testa,
empreenderam uma romaria ao Papa — e conseguiram quase fazer dele um cristão.
Em todo caso, o pontífice permitiu-lhes levar avante sua obra cristã, contanto
que nadafizessem para interferir na disciplina rígida da igreja organizada.
Francisco estava tão ocupado em fazer o bem, que não se preocupava com a
política dos sacerdotes, concordando em não molestar o
Papa contanto que este também não
o perturbasse.
Depois de seu entendimento com o
Papa, Francisco fez outra viagem — desta vez ao palácio do chefe dos
sarracenos. Por esta ocasião, a quinta Cruzada estava em seu apogeu. Francisco,
todavia, desarmado, foi à
presença do Sultão e procurou fazer dele um cristão, como tentara fazer
um cristão do Papa. O Sultão
recebeu-o com amabilidade, e, como o Papa, disse-lhe que
prosseguisse em sua missão.
Francisco voltou à Itália, e o Sultão e o Papa continuaram a lutar.
4
São Francisco tinha pouca
educação. Acreditava com a fé de uma criança e amava com a ingenuidade de um
menino, com todo o seu coração. Semelhante aos primeiros filósofos pagãos, era
também, embora não o admitisse,
um panteísta ou um panzoísta. Para ele tudo tinha vida e tudo
estava interrelacionado. Como uma
criança, considerava as aves como irmãzinhas, o vento e o sol como irmãos, e a
terra como a mãe viva de todos eles. Encontramos essa mesma personificação humanização
de tudo nos remotos escritores homéricos, que saudavam a terra como a mãe dos
homens e a esposa dos céus
estrelados. E, para apresentar um exemplo de outro período primitivo,inteiramente
diferente, encontramo-lo também entre os índios Pawnees, que cantam hinos a seu
pai,
o sol, e ouvem a voz de sua mãe,
o trigo gerador. Nos índios, possivelmente em Homero,
certamente em São Francisco, o
reconhecimento de um estreito parentesco entre todos os seres
animados e inanimados é muito
mais do que uma mera forma de retórica poética. É uma bela,
embora um tanto ingênua, inclusão
do mundo na família humana. São Francisco não só fala de suas
irmãzinhas, as aves, mas também
lhes dirige a palavra. Quando voltou de sua visita aos sarracenos
que procurava converter, deparou
com um bando de pássaros, em seu caminho, e com a
simplicidade e a sinceridade de
uma criança, procurou converter as aves ao cristianismo. Encantado
com as musicas com que suas
irmãzinhas o entretinham, sentiu que ele também possuía uma
música, melhor do que a delas,
com que podia entretê-las, por sua vez. “Irmãzinhas”, disse com a sua meiga
voz, “se tivestes oportunidade de falar, é tempo agora que eu também seja
ouvido.” Em
seguida proferiu um sermão a essa
alada congregação, a fim de lhes salvar as pequeninas almas.
Se isto parecer ao leitor
experimentado coisa que se aproxime do ridículo, consideremos outra
invocação de São Francisco, sua
invocação a seu ir
mão, o fogo, que sem dúvida se
aproxima do
sublime. Estava ele perdendo a
vista, quando os médicos lhe disseram que o único meio de salvá-lo
da cegueira era a cauterização de
um dos olhos: isto é, devia queimá-lo com ferro em brasa. Quando
tiravam o ferro da fornalha, ele
se ergueu, e dirigindo-se ao fogo, com gesto meigo, falou-lhe como
se este fosse um companheiro vivo
e gentil, que se dispunha a cumprir com um dever desagradável.
“Irmão Fogo”, disse, “Deus te fez
belo, forte e útil. Peço-te sejas gentil comigo.”
A gentileza foi talvez a nota
predominante do caráter de São Francisco. Nisso era também
semelhante a Buda. Tratava as
menores criaturas com tanta consideração como as maiores. Sentia
mais inclinação de pedir
desculpas a um mendigo, do que propensão de curvar-se diante de um imperador.
Houve, com certeza, momentos que silenciava a sua voz até na presença de
árvores e de
flores, para não lhes perturbar o
sono. Sua humildade não era a de um sentimento de inferioridade,
mas a humildade causada pela
ausência completa do egoísmo. Ele simplesmente não tinha tempo e
tampouco vontade de cuidar de si
mesmo. Deleitava-se muito mais, preocupando-se com a sorte de seus semelhantes.
O mundo inteiro era para ele um mundo de reis e ele o único súdito de boa
vontade.
5
Após uma vida de peregrinações,
praticando o bem, voltou à sua terra. Era então um homem
velho — tinha quarenta e quatro
anos pelo cálculo cronológico, mas tinha séculos se fossem
consideradas as boas ações e seus
nobres sentimentos. A despeito de sua visão falha, prosseguia,
como trovador de Deus, a
“peregrinar cantando”, até que por fim as forças lhe faltaram e ele voltou a
Assis para terminar seus dias. “Se fordes a algum lugar fazer qualquer
peregrinação”, disse ele,
“voltai sempre ao vosso lar, pois
é aí a santa mansão de Deus.” E assim, cercado por seus amigos,deitou afinal em
sua terra natal e nela adormeceu. Corria o ano de 1226.
Morreu um homem desiludido. “É
uma triste ironia”, escreve G. K. Chesterton, “que São Francisco, que em toda
sua vida sempre desejou o entendimento unânime dos homens, morresse no
meio dum desacordo crescente.” Tinha
feito um voto de pobreza extrema. Anarquista e pacifista
que era, sempre preveniu seus
frades franciscanos contra o perigo de possuírem propriedades, pois,
como ele lhes dizia, “se nós
tivéssemos quaisquer posses, necessitaríamos de armamentos e leis
para defendê-las”. Um trovador de
Deus, insistia “não deveria possuir nada além de sua harpa”.
Contudo, viveu o suficiente para
ver ricos mosteiros erguerem-se em seu nome, e os franciscanos se
esquecerem de seus votos de pobreza
nas suas contendas para a aquisição dos direitos à propriedade de suas igrejas.
Muitos dos franciscanos, todavia,
continuaram fiéis aos ensinamentos de São Francisco.
Retribuía-se-lhes com ódios e
perseguições. Poucos anos depois da morte de São Francisco, nada menos de cem
franciscanos fiéis foram queimados vivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário