terça-feira, 1 de novembro de 2016

MARTINHO LUTERO, O CAMPONÊS QUE DESAFIOU O PAPA


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A morte de Leonardo da Vinci leva-nos ao primeiro quartel do século XVI. Até aqui observamos a humanidade sob a cruz durante mil e quinhentos anos. Embora envergonhados,somos forçados a admitir que o quadro não era para orgulhar ninguém.
O homem ainda não saíra da floresta virgem de seus instintos primitivos. Assemelhava-se,
como sempre, a um bruto. Seus instrumentos eram, na maior parte, instrumentos de destruição, e
sua língua, quase sempre, a língua da falsidade. Aprendera a construir palácios e igrejas, a criar
poemas, quadros e, sermões, a esculpir, para seu divertimento e adoração, estranhos bonecos de mármore é granito. Seu culto pela arte, porém, ainda não lhe ensinara a cultuar a vida. Invocando seu Deus, ainda persistia em matar seus semelhantes. Engendrara uma religião que não condenava o assassínio e em nome de Cristo perseguia aqueles que mais fielmente trilhavam os passos de Cristo.
Depois de mil e quinhentos anos de cristianismo, o homem ainda não aprendera a ser humano.
Entretanto, há outro lado do quadro mais cheio de esperança. Aqui e ali, entre a massa de imbecis, selvagens e hipócritas que vem há milênios formando a raça humana, surge de vez era quando um homem de grande sabedoria e infinita coragem. A argila humana, com a qual todos nós
fomos modelados, é também suscetível de dar forma à divina beleza. Tais homens divinos são raros, no entanto; surgem na História como exemplos prematuros de homens ainda maiores que hão devir. Quase sempre, porém, para que sejam cultuados pelas gerações vindouras, seus contemporâneos pregam-nos na cruz ou transformam seus corpos em tochas ardentes.
Enquanto existirem homens prontos a matar por suas idéias, permaneceremos uma raça de
selvagens. Contudo, enquanto existirem homens prontos a morrer por elas, haverá sempre a esperança de que finalmente nos tornemos civilizados.
Certa vez, um homem que se dispôs a morrer por suas idéias — felizmente ou infelizmente?
— escapou ao veneno de seus contemporâneos. Tal homem foi Martinho Lutero. Muitas e muitas vezes foi ele ameaçado de morte como herege, mas sempre conseguiu escapar. Sua longa vida terá sido uma bênção para a raça humana?
Vejamos.
2
Em 1510 o Papa Júlio II, desejando reconstruir a Catedral de São Pedro, em Roma, prometeu indulgências a todos que lhe mandassem fundos para tal obra. As indulgências eram notas promissórias sacadas contra o céu para perdoar os pecados daqueles que oferecessem dinheiro à
Igreja. Para o espírito ortodoxo do tempo, tal processo infantil parecia perfeitamente natural. O Papa, naquela época, era tido como o maior “pistolão” junto aos dirigentes do céu. Se um homem oferecesse pouco dinheiro, teria forçosamente de passar uma temporada no purgatório. Se desse bastante, pelo contrário, automaticamente escapava dessa temporada. Isso transformava as indulgências num alto negócio e inumeráveis extorsões foram então cometidas pelos padres.
A venda de indulgências para a reconstrução de São Pedro foi conduzida sempre com uma grande dose de refinamento. Os camponeses eram compelidos a gastar muito mais dinheiro do que podiam. Isso provocou a cólera de Lutero. Era ele um piedoso católico, frade dominicano, mas
dotado de espírito independente. Estudara teologia na Universidade de Wittenberg e estava convencido de que Deus não estava em absoluto interessado na política nem nas indulgências do
Papa.
Dessa maneira, no dia 31 de outubro de 1517, Lutero pregou, no portal da capela do castelo
da cidade em que residia, um manifesto protestando contra as práticas do Papa. Esse manifesto
protestante salientava que o Papa não tinha a intenção nem o poder de alterar os desígnios de Deus
quanto aos pecados dos homens. Deus, declarava ele, daria mais atenção aos sinceros exercícios de
piedade do que às cartas de perdão do Papa. “Os cristãos devem ser advertidos de que se o Papa
soubesse das extorsões dos pregadores mercenários, preferiria antes ver a Catedral de São Pedro em
cinzas do que a ver reconstruída com a pele, a carne e os ossos de suas ove
lhas... Por que o Papa,que é hoje tão rico como o mais rico dos Cresos, não reconstrói a Catedral de São Pedro,empregando o próprio dinheiro, em vez de utilizar o de seus pobres crentes?”
E concluiu seu manifesto revolucionário por desafiar a todos que não estivessem satisfeitos
com o seu conteúdo a refutar seus argumentos, se pudessem. Lutero era então um jovem de trinta e quatro anos.Seu desafio em pouco tempo tomou as proporções de uma controvérsia. Os padres
denunciaram-no como herege porque ele ousou ir de encontro ao poder do Papa. Mas o grosso do
povo, que estava cansado de ser explorado pelos padres, aclamou Lutero como o líder da nova
rebelião religiosa.
E, assim, porque o Papa desejava reconstruir a Catedral de São Pedro, lançou sem querer a
pedra fundamental da Igreja Protestante.
Mas a causa determinante da Reforma não foi assim tão trivial como pode parecer. As
sementes do movimento foram plantadas, muitos séculos antes, pelos hereges. Elas, porém, só
tomaram raízes no solo da Renascença. Então cresceram apesar, ou melhor, por causa, da
perseguição da Igreja. E agora, quando o tempo as amadureceu, vieram a florescer na declaração de
Lutero, que preconizava a independência religiosa. A alma do protestantismo esperava havia
quatrocentos anos por um corpo. Lutero criou esse corpo e, como veremos, destruiu a alma.
3
Em conseqüência do tumulto eclesiástico que se manifestava, Lutero foi chamado a Augsburg
(outubro de 1518) e intimado a renunciar a suas idéias revolucionárias. Mas o frade rebelde
confiava em suas armas. A Igreja, fiada na sua grande popularidade na Alemanha, não o molestou
durante dois anos. Finalmente, quando o Papa viu que nada conseguia por meio da persuasão,
passou a empregar a perseguição. Em junho de 1520, publicou uma bula ria qual anatematizava as
doutrinas de Lutero, ordenando que seus livros fossem queimados em praça pública, e lhe dava um
prazo de sessenta dias para se retratar ou ser excomungado.
Lutero preferiu ser excomungado e respondeu à bula papal com um violento panfleto no qual
mandava o Papa, com os devidos cumprimentos, diretamente para o diabo. Depois, entre o
entusiasmo dos estudantes e do populacho de Wittenberg, queimou publicamente o decreto do Papa
e as cartas de seus opositores. Lutero, o herege, estava às bordas da fo
gueira. Mas, justamente no
momento de começar o espetáculo, o principal ator desapareceu. Seus amigos o conduziram,embora contra a sua vontade, para o Castelo de Wartburg, onde, sob um nome su
posto, passava ele
o tempo a traduzir o Novo Testamento do grego para o alemão. Como Wycliffe, acreditava que
assistia a todos o direito de ler e interpretar a Bíblia a seu talante, em vez de aceitar cegamente a
interpretação do Papa.
Um mês após o seu desaparecimento, o imperador declarou-o inimigo do Estado, uma vez que
era um herege a lutar contra a Igreja. Sitiado entre as armas sagradas e regulares da lei, Lutero
parecia destinada a uma vida de reclusão forçada ou a uma morte de mártir. Mas, uma vez ainda, os
fados lhe foram favoráveis, pois justamente nessa ocasião a França declarou guerra à Alemanha e os
hereges foram esquecidos. Durante dez anos o imperador esteve ocupado com a guerra, e Lutero
pôde desenvol
ver o seu programa de reforma protestante.
A princípio, o reformador não tinha a intenção de separar-se da Igreja Católica. Não queria
fundar uma nova religião, mas apenas corrigir os abusos da antiga. Opôs-se, por isso, à arrogância
do clero. Não via razão para este se colocar à parte, como uma classe superior. Um ministro da
Igreja, acreditava, devia ser um servo, não apenas de Deus mas também de seus seguidores. Apelou,
portanto, para os padres no sentido de melhorarem seus costumes — abolindo o celibato,
extinguindo os privilégios e vivendo a vida de um homem comum.
Lutero também fez objeções a certos cerimoniais da Igreja. Os católicos ortodoxos insistiam
em rezar de um modo convencional. Lutero, por outro lado, sustentou que seu novo método de rezar
era mais agradável aos olhos de Deus. Tudo, naturalmente, era uma questão de mera formalidade.
No século XVI, contudo, a formalidade era algo de muito sério. As populações estavam prontas a se
matar mutuamente desde que não chegassem a um acordo sobre a interpretação de uma frase
teológica ou a posição de uma simples vírgula em qualquer frase meta
física.
E assim Lutero, com suas novas doutrinas e argumentos, poucos dos quais eram sublimes,
mas muitos ridículos, tentou melhorar a igreja ortodoxa,, na qual ardentemente acreditava. Seu
objetivo era melhorar, mas não reconstruir. Foi somente quando os católicos o excomungaram que
ele se decidiu a estabelecer uma igreja própria. Essa igreja devia ser diferente da católica não
apenas em espírito, mas também em forma. Cada membro da igreja protes
tante seria o seu próprio
padre, tendo absoluta liberdade para adorar a Deus à sua maneira e seguindo a autoridade da Bíblia
em vez de seguir a do Papa. Finalmente Lutero fez o possível para con
vencer os católicos de que a
sua crença era melhor que a deles.
Começou então uma longa série de enforcamentos e assassínios pelo fogo entre os adeptos do
protestantismo e os católicos. Tanto Lutero como â maior parte dos padres da Igreja tinham
esquecido de ensinar a seus seguidores uma coisa importantíssima — a tolerância religiosa.
No início de sua carreira, Lutero era um ho
mem de coragem, sábio e piedoso. Sua coragem
permaneceu até o fim, mas sua sabedoria e sua piedade abandonaram-no no tumulto de suas
controvérsias. Quando jovem, demonstrava piedade pelos deserdados. Camponês ele próprio, foi
um grande amigo dos camponeses. Tendo experimentado a amargura da perseguição, simpatizou
com os judeus, que eram perseguidos, como ele, por sua crença. Em um ensaio intitulado: “Jesus
nasceu judeu”, Lutero escreveu: “Eles (os judeus) têm parentesco de sangue com Nosso Senhor e, a
se dar valor a tal parentesco, pertencem a Cristo mais do que nós... Portanto, é meu conselho que se
trate essa raça com bondade... Precisamos executar não a lei do Papa, mas a do amor cristão,
mostrando a ela um espírito de amizade...”
Mais tarde, porém, quando os camponeses quiseram rebelar-se contra a tirania dos príncipes,
ao mesmo tempo que seu chefe espiritual se rebelava contra a tirania do Papa, rompeu Lutero em
ranço rosas denúncias contra aqueles. “Que cada alma”, trovejava, “permaneça submissa ao poder
mais alto.” Lutero acreditava ter o poder de julgar seu Papa, mas negava aos camponeses o direito
de julgar seu rei. A rebelião contra o rei, sustentava, não pode ser justificada por nenhum erro que
por acaso tenha o rei cometido. Tendo, trabalhado durante toda a vida para estabelecer a justiça
social no céu, condenava ele agora os camponeses que tentavam estabelecer essa mesma justiça na
terra. Em seu “livro selvagem” — como Erasmo o denominou — contra a “canalha camponesa,
ladra e assassina”, exortou os príncipes a afogar em sangue qualquer rebelião que dela partisse.
“Onde quer que surja a rebeldia, escreveu o último intérprete da suave religião de Jesus, aí deverá
ser empregada imediatamente a violência... É apunhalar, queimar, “estrangular quem puder!” E os
príncipes não esperaram segunda recomendação: aceitaram a sugestão de seu novo líder religioso e,
apunhalando, queimando e estrangulando, reduziram os camponeses à sub
missão em curtíssimo
tempo.
Do mesmo modo, Martinho Lutero operou uma mudança de sentimento em sua atitude para
com os judeus. Havia demonstrado amizade por esse povo na esperança de que o pudesse converter
ao protestantismo. Quando viu, porém, que os judeus pros
seguiam na sua antiga fé, rompeu contra
eles com a mesma violência com que havia rompido contra os camponeses. “Queimai suas
sinagogas e escolas”, escreveu em resposta aos que lhe perguntavam o que deviam fazer com os
judeus. “Enterrai o que não for possível queimar... Depredai e destruí suas casas... Tomai todos os
seus livros de oração e seus Talmudes... Proibi a seus rabinos de ensinar sob pena de lhes ser
cortada a língua, se insistirem.” E conselhos semelhantes contra o povo que lhe havia dado um deus
eram ministrados por Lutero em cerca de quatrocentas páginas.
Martinho Lutero morreu em 1546, aos sessenta e três anos de idade. Salientou-se por sua luta contra a tirania, mas terminou por se tornar um tirano também. Por seus últimos atos, “submeteu
completamente a religião”, observa o Prof. George Foot Moore (
História das Religiões
, vol. II, pág.
325), “ao poder e à riqueza, empregando os mesmos processos usados pela Igreja medieval, e
desvanecendo as esperanças daqueles que sonhavam possuir o evangelho, a promessa de uma vida desvanecendo as esperanças daqueles que sonhavam possuir o evangelho, a promessa de uma vida presente tão boa quanto à futura”.
Em outras palavras, Cristo tentou estabelecer uma religião, para a proteção dos humildes, e Lutero, como inúmeros outros católicos antes dele, tentou mais tarde estabelecer outra para oprimir os desprotegidos.

A cristandade ainda estava muito longe da religião de Cristo.

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