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A morte
de Leonardo da Vinci leva-nos ao primeiro quartel do século XVI. Até aqui observamos
a humanidade sob a cruz durante mil e quinhentos anos. Embora
envergonhados,somos forçados a admitir que o quadro não era para orgulhar
ninguém.
O homem
ainda não saíra da floresta virgem de seus instintos primitivos. Assemelhava-se,
como sempre,
a um bruto. Seus instrumentos eram, na maior parte, instrumentos de destruição,
e
sua
língua, quase sempre, a língua da falsidade. Aprendera a construir palácios e
igrejas, a criar
poemas,
quadros e, sermões, a esculpir, para seu divertimento e adoração, estranhos
bonecos de mármore é granito. Seu culto pela arte, porém, ainda não lhe ensinara
a cultuar a vida. Invocando seu Deus, ainda persistia em matar seus semelhantes.
Engendrara uma religião que não condenava o assassínio e em nome de Cristo
perseguia aqueles que mais fielmente trilhavam os passos de Cristo.
Depois de
mil e quinhentos anos de cristianismo, o homem ainda não aprendera a ser
humano.
Entretanto,
há outro lado do quadro mais cheio de esperança. Aqui e ali, entre a massa de imbecis,
selvagens e hipócritas que vem há milênios formando a raça humana, surge de vez
era quando um homem de grande sabedoria e infinita coragem. A argila humana,
com a qual todos nós
fomos
modelados, é também suscetível de dar forma à divina beleza. Tais homens
divinos são raros, no entanto; surgem na História como exemplos prematuros de
homens ainda maiores que hão devir. Quase sempre, porém, para que sejam
cultuados pelas gerações vindouras, seus contemporâneos pregam-nos na cruz ou
transformam seus corpos em tochas ardentes.
Enquanto
existirem homens prontos a matar por suas idéias, permaneceremos uma raça de
selvagens.
Contudo, enquanto existirem homens prontos a morrer por elas, haverá sempre a esperança
de que finalmente nos tornemos civilizados.
Certa
vez, um homem que se dispôs a morrer por suas idéias — felizmente ou
infelizmente?
— escapou
ao veneno de seus contemporâneos. Tal homem foi Martinho Lutero. Muitas e
muitas vezes foi ele ameaçado de morte como herege, mas sempre conseguiu
escapar. Sua longa vida terá sido uma bênção para a raça humana?
Vejamos.
2
Em 1510 o
Papa Júlio II, desejando reconstruir a Catedral de São Pedro, em Roma, prometeu
indulgências a todos que lhe mandassem fundos para tal obra. As indulgências
eram notas promissórias sacadas contra o céu para perdoar os pecados daqueles
que oferecessem dinheiro à
Igreja.
Para o espírito ortodoxo do tempo, tal processo infantil parecia perfeitamente
natural. O Papa, naquela época, era tido como o maior “pistolão” junto aos
dirigentes do céu. Se um homem oferecesse pouco dinheiro, teria forçosamente de
passar uma temporada no purgatório. Se desse bastante, pelo contrário, automaticamente
escapava dessa temporada. Isso transformava as indulgências num alto negócio e
inumeráveis extorsões foram então cometidas pelos padres.
A venda
de indulgências para a reconstrução de São Pedro foi conduzida sempre com uma grande
dose de refinamento. Os camponeses eram compelidos a gastar muito mais dinheiro
do que podiam. Isso provocou a cólera de Lutero. Era ele um piedoso católico,
frade dominicano, mas
dotado de
espírito independente. Estudara teologia na Universidade de Wittenberg e estava
convencido de que Deus não estava em absoluto interessado na política nem nas
indulgências do
Papa.
Dessa
maneira, no dia 31 de outubro de 1517, Lutero pregou, no portal da capela do
castelo
da cidade
em que residia, um manifesto protestando contra as práticas do Papa. Esse
manifesto
protestante
salientava que o Papa não tinha a intenção nem o poder de alterar os desígnios
de Deus
quanto
aos pecados dos homens. Deus, declarava ele, daria mais atenção aos sinceros
exercícios de
piedade
do que às cartas de perdão do Papa. “Os cristãos devem ser advertidos de que se
o Papa
soubesse
das extorsões dos pregadores mercenários, preferiria antes ver a Catedral de
São Pedro em
cinzas do
que a ver reconstruída com a pele, a carne e os ossos de suas ove
lhas...
Por que o Papa,que é hoje tão rico como o mais rico dos Cresos, não reconstrói
a Catedral de São Pedro,empregando o próprio dinheiro, em vez de utilizar o de
seus pobres crentes?”
E
concluiu seu manifesto revolucionário por desafiar a todos que não estivessem
satisfeitos
com o seu
conteúdo a refutar seus argumentos, se pudessem. Lutero era então um jovem de
trinta e quatro anos.Seu desafio em pouco tempo tomou as proporções de uma
controvérsia. Os padres
denunciaram-no
como herege porque ele ousou ir de encontro ao poder do Papa. Mas o grosso do
povo, que
estava cansado de ser explorado pelos padres, aclamou Lutero como o líder da
nova
rebelião
religiosa.
E, assim,
porque o Papa desejava reconstruir a Catedral de São Pedro, lançou sem querer a
pedra
fundamental da Igreja Protestante.
Mas a
causa determinante da Reforma não foi assim tão trivial como pode parecer. As
sementes
do movimento foram plantadas, muitos séculos antes, pelos hereges. Elas, porém,
só
tomaram
raízes no solo da Renascença. Então cresceram apesar, ou melhor, por causa, da
perseguição
da Igreja. E agora, quando o tempo as amadureceu, vieram a florescer na
declaração de
Lutero,
que preconizava a independência religiosa. A alma do protestantismo esperava
havia
quatrocentos
anos por um corpo. Lutero criou esse corpo e, como veremos, destruiu a alma.
3
Em
conseqüência do tumulto eclesiástico que se manifestava, Lutero foi chamado a
Augsburg
(outubro
de 1518) e intimado a renunciar a suas idéias revolucionárias. Mas o frade rebelde
confiava
em suas armas. A Igreja, fiada na sua grande popularidade na Alemanha, não o
molestou
durante
dois anos. Finalmente, quando o Papa viu que nada conseguia por meio da
persuasão,
passou a
empregar a perseguição. Em junho de 1520, publicou uma bula ria qual
anatematizava as
doutrinas
de Lutero, ordenando que seus livros fossem queimados em praça pública, e lhe
dava um
prazo de
sessenta dias para se retratar ou ser excomungado.
Lutero
preferiu ser excomungado e respondeu à bula papal com um violento panfleto no
qual
mandava o
Papa, com os devidos cumprimentos, diretamente para o diabo. Depois, entre o
entusiasmo
dos estudantes e do populacho de Wittenberg, queimou publicamente o decreto do
Papa
e as
cartas de seus opositores. Lutero, o herege, estava às bordas da fo
gueira.
Mas, justamente no
momento
de começar o espetáculo, o principal ator desapareceu. Seus amigos o
conduziram,embora contra a sua vontade, para o Castelo de Wartburg, onde, sob
um nome su
posto,
passava ele
o tempo a
traduzir o Novo Testamento do grego para o alemão. Como Wycliffe, acreditava
que
assistia
a todos o direito de ler e interpretar a Bíblia a seu talante, em vez de
aceitar cegamente a
interpretação
do Papa.
Um mês
após o seu desaparecimento, o imperador declarou-o inimigo do Estado, uma vez
que
era um
herege a lutar contra a Igreja. Sitiado entre as armas sagradas e regulares da
lei, Lutero
parecia
destinada a uma vida de reclusão forçada ou a uma morte de mártir. Mas, uma vez
ainda, os
fados lhe
foram favoráveis, pois justamente nessa ocasião a França declarou guerra à
Alemanha e os
hereges
foram esquecidos. Durante dez anos o imperador esteve ocupado com a guerra, e
Lutero
pôde
desenvol
ver o seu
programa de reforma protestante.
A
princípio, o reformador não tinha a intenção de separar-se da Igreja Católica.
Não queria
fundar
uma nova religião, mas apenas corrigir os abusos da antiga. Opôs-se, por isso,
à arrogância
do clero.
Não via razão para este se colocar à parte, como uma classe superior. Um
ministro da
Igreja,
acreditava, devia ser um servo, não apenas de Deus mas também de seus
seguidores. Apelou,
portanto,
para os padres no sentido de melhorarem seus costumes — abolindo o celibato,
extinguindo
os privilégios e vivendo a vida de um homem comum.
Lutero
também fez objeções a certos cerimoniais da Igreja. Os católicos ortodoxos
insistiam
em rezar
de um modo convencional. Lutero, por outro lado, sustentou que seu novo método
de rezar
era mais
agradável aos olhos de Deus. Tudo, naturalmente, era uma questão de mera
formalidade.
No século
XVI, contudo, a formalidade era algo de muito sério. As populações estavam
prontas a se
matar mutuamente
desde que não chegassem a um acordo sobre a interpretação de uma frase
teológica
ou a posição de uma simples vírgula em qualquer frase meta
física.
E assim
Lutero, com suas novas doutrinas e argumentos, poucos dos quais eram sublimes,
mas
muitos ridículos, tentou melhorar a igreja ortodoxa,, na qual ardentemente
acreditava. Seu
objetivo
era melhorar, mas não reconstruir. Foi somente quando os católicos o
excomungaram que
ele se
decidiu a estabelecer uma igreja própria. Essa igreja devia ser diferente da
católica não
apenas em
espírito, mas também em forma. Cada membro da igreja protes
tante
seria o seu próprio
padre,
tendo absoluta liberdade para adorar a Deus à sua maneira e seguindo a
autoridade da Bíblia
em vez de
seguir a do Papa. Finalmente Lutero fez o possível para con
vencer os
católicos de que a
sua
crença era melhor que a deles.
Começou
então uma longa série de enforcamentos e assassínios pelo fogo entre os adeptos
do
protestantismo
e os católicos. Tanto Lutero como â maior parte dos padres da Igreja tinham
esquecido
de ensinar a seus seguidores uma coisa importantíssima — a tolerância
religiosa.
No início
de sua carreira, Lutero era um ho
mem de
coragem, sábio e piedoso. Sua coragem
permaneceu
até o fim, mas sua sabedoria e sua piedade abandonaram-no no tumulto de suas
controvérsias.
Quando jovem, demonstrava piedade pelos deserdados. Camponês ele próprio, foi
um grande
amigo dos camponeses. Tendo experimentado a amargura da perseguição, simpatizou
com os
judeus, que eram perseguidos, como ele, por sua crença. Em um ensaio
intitulado: “Jesus
nasceu
judeu”, Lutero escreveu: “Eles (os judeus) têm parentesco de sangue com Nosso
Senhor e, a
se dar
valor a tal parentesco, pertencem a Cristo mais do que nós... Portanto, é meu
conselho que se
trate
essa raça com bondade... Precisamos executar não a lei do Papa, mas a do amor
cristão,
mostrando
a ela um espírito de amizade...”
Mais
tarde, porém, quando os camponeses quiseram rebelar-se contra a tirania dos
príncipes,
ao mesmo
tempo que seu chefe espiritual se rebelava contra a tirania do Papa, rompeu
Lutero em
ranço rosas
denúncias contra aqueles. “Que cada alma”, trovejava, “permaneça submissa ao
poder
mais alto.”
Lutero acreditava ter o poder de julgar seu Papa, mas negava aos camponeses o
direito
de julgar
seu rei. A rebelião contra o rei, sustentava, não pode ser justificada por
nenhum erro que
por acaso
tenha o rei cometido. Tendo, trabalhado durante toda a vida para estabelecer a
justiça
social no
céu, condenava ele agora os camponeses que tentavam estabelecer essa mesma
justiça na
terra. Em
seu “livro selvagem” — como Erasmo o denominou — contra a “canalha camponesa,
ladra e
assassina”, exortou os príncipes a afogar em sangue qualquer rebelião que dela
partisse.
“Onde
quer que surja a rebeldia, escreveu o último intérprete da suave religião de
Jesus, aí deverá
ser
empregada imediatamente a violência... É apunhalar, queimar, “estrangular quem
puder!” E os
príncipes
não esperaram segunda recomendação: aceitaram a sugestão de seu novo líder
religioso e,
apunhalando,
queimando e estrangulando, reduziram os camponeses à sub
missão em
curtíssimo
tempo.
Do mesmo
modo, Martinho Lutero operou uma mudança de sentimento em sua atitude para
com os
judeus. Havia demonstrado amizade por esse povo na esperança de que o pudesse
converter
ao protestantismo.
Quando viu, porém, que os judeus pros
seguiam
na sua antiga fé, rompeu contra
eles com
a mesma violência com que havia rompido contra os camponeses. “Queimai suas
sinagogas
e escolas”, escreveu em resposta aos que lhe perguntavam o que deviam fazer com
os
judeus.
“Enterrai o que não for possível queimar... Depredai e destruí suas casas...
Tomai todos os
seus
livros de oração e seus Talmudes... Proibi a seus rabinos de ensinar sob pena
de lhes ser
cortada a
língua, se insistirem.” E conselhos semelhantes contra o povo que lhe havia
dado um deus
eram
ministrados por Lutero em cerca de quatrocentas páginas.
Martinho
Lutero morreu em 1546, aos sessenta e três anos de idade. Salientou-se por sua
luta contra a tirania, mas terminou por se tornar um tirano também. Por seus
últimos atos, “submeteu
completamente
a religião”, observa o Prof. George Foot Moore (
História
das Religiões
, vol.
II, pág.
325), “ao
poder e à riqueza, empregando os mesmos processos usados pela Igreja medieval,
e
desvanecendo as esperanças
daqueles que sonhavam possuir o evangelho, a promessa de uma vida desvanecendo
as esperanças daqueles que sonhavam possuir o evangelho, a promessa de uma vida
presente tão boa quanto à futura”.
Em outras
palavras, Cristo tentou estabelecer uma religião, para a proteção dos humildes,
e Lutero, como inúmeros outros católicos antes dele, tentou mais tarde
estabelecer outra para oprimir os desprotegidos.
A
cristandade ainda estava muito longe da religião de Cristo.
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