Por que proclamação da república e não golpe?
Pressionado por setores
do Exército e pelos republicanos a liderar a deposição da monarquia, o
marechal Deodoro da Fonseca hesitava. Não queria bater de frente com “o
velho”, o imperador dom Pedro 2°, que respeitava. Falava em um dia poder
acompanhar o caixão do monarca.
Mas
Deodoro acabou cedendo às pressões em 15 de novembro de 1889, derrubou o
regime, virou o primeiro presidente e o feriado da Proclamação da
República está aí.
Agora,
por que o senso comum fala de “proclamação” e não de golpe? Afinal, o
Exército derrubou o imperador e o governo constitucional, que ali estava
de acordo com a Carta de 1824. Gestado pelas elite econômico-militar
insatisfeita com os rumos do país, o movimento não teve participação
popular.
A
família Bragança foi tirada do país de madrugada, para evitar reações
populares. Sob os protestos de dom Pedro, que teria protestado: “Não sou
negro fugido. Não embarco nessa hora. Os senhores são uns doidos!”
Segundo
o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, autor de
“Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, foi um
movimento “ilegal e ilegítimo”.
“O
movimento republicano existia, mas sem condições de chegar ao poder por
via legal. Uma alternativa discutida era uma constituinte para decidir a
forma de governo. O golpe a frustou”, afirmou Carvalho ao blog.
“Golpe do bem”
No ótimo artigo recente “Um teste para seu DNA golpista”, Elio Gaspari enumera dez rupturas institucionais brasileiras e pede que o leitor julgue se foram ou não golpes.
“Quem
não viu golpe em 1889, 1930 e 1945 tem uma inclinação para apoiar
‘golpes para o bem’”, diz Gaspari. Refere-se à deposição de dom Pedro, à
“revolução” em que Getúlio Vargas derrubou os oligarcas da República
Velha e à derrubada do Estado Novo getulista, que atuava à margem do
Estado de direito.
Mas,
afinal, não haveria legitimidade em depor um regime liderado por um
monarca vitalício, rodeado por uma corte de nobres e chefe de um “Poder
Moderador” que se sobrepunha aos demais e baseado em uma Constituição
que havia sido outorgada por seu pai?
“Não
existe golpe do bem”, opina a antropóloga e historiadora Lilia Moritz
Schwarcz, autora de “As barbas do imperador” e do recente “Brasil: uma
biografia”.
“A
gente aprende como historiador que não vale só você seguir sua
ideologia”, diz sobre a ideia de que o que não corresponde a uma
idealização é tratado como revolução e o que não corresponde, é golpe.
“É
golpe quando você tem uma movimentação política que coloca fim a um
Estado legalmente constituído. A gente pode concordar ou não com a
monarquia, mas era constitucional”, afirma.
Poder Moderador x AI-5
Com o potencial autocrático do Poder Moderador, poderíamos chamar o regime monárquico de ditadura?
A
historiadora diz que ditadura é um conceito datado, mais afeitos aos
modelos políticos do século 20, como o regime militar iniciado em 1964.
“Quando você usa o termo [para falar da monarquia], é um anacronismo.”
Ela
classifica o Poder Moderador como “terrível”, mas argumenta que
“diferente de uma ditadura, o Poder Moderador praticamente não foi
utilizado, muito diferente dos nossos atos institucionais [da ditadura
militar de 1964]”.
Mas
isso porque dom Pedro 2° era um estadista pacato. Como teriam sido seus
eventuais sucessores com tal poder de impor suas vontades a Executivo,
Legislativo e Judiciário? “A gente não faz a história do ‘se’”, diz
Schwarcz.
Mudança
E
é justamente na ditadura militar de 64-85 que o conceito de
“proclamação” da república encontra ecos. A exaltação republicana e
conceito crítica à monarquia começou logo após o início do regime, com
trocas de símbolos, nomes de ruas, colégios, estações de trem. A
historiografia republicana se impôs ao longo dos anos e se reforçou sob o
regime de 64.
“A ditadura militar que refez uma linguagem de patriotada em torno da proclamação da república”, conta Schwarcz.
O regime que chegou ao poder por um golpe não teve coragem de chamar assim o golpe de 1889.
Mas
as coisas estão mudando. A ideia de uma asséptica “proclamação” da
república, embora predominante no senso comum, começou a ser questionada
após a redemocratização, sobretudo entre os historiadores.
Hoje, diz Schwarcz, isso já chega mais facilmente aos livros didáticos e às escolas.
Quem
sabe um dia a ideia pegue a se dê os devidos nomes aos bois. Esperamos,
porém, que a data nunca deixe de ser um feriado e que evite cair aos
domingos.
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