segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

“No trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”

O acaso do folhear leva-me ao texto 178, do Livro do Desassossego, do semi-heterônimo pessoano Bernardo Soares. Coincidência ou não, fala-me de morte, tema que vem ocupando bastante minha cabeça, ultimamente.

Penso em Manuel Bandeira, que a tratava com uma indisfarçável ironia, chamando-a de “Indesejada das Gentes”, e que, pela sua proximidade física, tinha com ela uma relação meio que especial, entre velha camarada e respeitosa senhora, capaz de trazer as trevas ao dia tão pronto: “pode a noite descer”, diz o poeta pernambucano; “encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / a mesa posta, / com cada coisa em seu lugar”. Não sei se de tanto ser esnobada ou para se cumprir algo que não imagino o que seja, a “iniludível” só veio lhe fazer a visita fatal depois de oito décadas de vida.

A morte leva-me também para Augusto dos Anjos, embora este a trate de uma forma muito mais crua, escancarado o verbo, num palavrório que choca os estômagos mais sensíveis: “Que importa a mim que a bicharia roa / Todo meu coração, depois da morte?!” Por que alguém se preocuparia em evidenciar tão lúgubres detalhes de um ato que, apesar de corriqueiro, causa tanto impacto na vida das pessoas? Falar de vermes em ação não patentearia uma tendência mórbida ao masoquismo? Ou seria uma tentativa de, encarando a morte “de frente”, no que ela tem de mais real, tentar se acostumar com sua presença iminente?

Machado de Assis já intrigara – mais que chocara – os leitores, antes, ao dedicar as “Memórias Póstumas de Brás Cubas” “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Lançando mão de um autor-defunto, ou defunto-autor, liberta-se das convenções limitadoras da vida, podendo falar o que bem entende, sobre o que quiser. Aliás, não foi outra a razão de termos os mortos, em “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, falando e entregando as mazelas de toda a gente dita “de bem” da cidade.

“Morte, morte, morte, / que talvez seja o segredo desta vida”, conjetura a dupla Raul Seixas/Paulo Coelho. Se bem que, nesse campo (o da música), é impressionante a quantidade de referências à morte: desde a cândida Martinha (“Eu daria a minha vida para te esquecer”) ao debochado Noel Rosa (“Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela”). A morte virou artigo banal, nessas canções.
A morte, subvertida em seu comportamento, virando-se na mais pura viagem literária, como em “A Morte e a morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado; ou a tocante “morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade; as poéticas mortes árcades de Lindóia (“Uraguai”, de Basílio da Gama) ou Moema (“Caramuru”, do Frei José de Santa Rita Durão)... Exemplos pululam, só para citar a literatura brasileira, em que esse tema é reincidente.

Foi numa página de morte que abri, ao acaso, o “Livro do Desassossego”. Ponho-me a ler:
"Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos."

Já me senti atraído por essa idéia várias vezes. Sempre desconfiei de que havia alguma coisa trocada nos conceitos que temos a respeito de morte e vida. Não cheguei a esse radicalismo de Bernardo Soares, confesso... até porque a profundidade das entrelinhas desse trecho é infinda, e não pretendo explorá-la aqui. Falta-me oxigênio para tanto.
Melhor continuar lendo:

"Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro."
De fato, a fragilidade da vida é evidente. Não importa a consistência do sonho – sejam os mais épicos –, diluem-se feito fumaça ao mais leve esbarrão que faça o sonhador acordar. Vida também é assim: forte, sólida, mas à mercê do menor estremecimento, que a faça perder-se na fluidez do não-mais-existir. Temeroso, isso...
Isso é um óbvio ululante, como é incontestável o que Soares acrescenta:

"O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos."

Não estamos parados, “no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”o trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”, como diz o Raul, mas nos movemos em meio a tudo que nos amedronta e que faz parte do que somos. Mas essa questão suscitará outras, que levarão certo tempo e espaço; melhor dar um tempo aqui e agora, e continuar alhures. Na cabeça, quem sabe...

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