Para além dos efeitos da Lei Áurea que completa 127 anos, trabalhadores
rurais do Brasil ainda vivem atualmente sob a ameaça do cativeiro.
Mudaram-se os rótulos, ficaram as garrafas. Marx afirmava que o “morto
apodera-se do vivo''. Com base na permanência da escravidão sob outras
formas, constata-se que não são apenas as velhas formas que se inserem
nas novas, mas as novas recorrem às velhas sempre que possível.
O texto é grande, mas a data é importante.
Hoje, comemoram-se
os 127 anos da Lei Áurea, quando o Estado brasileiro passou a
considerar ilegal o direito de propriedade de um ser humano sobre outro.
Contudo, o ato da princesa Isabel não foi a causa do fim do regime
escravista no país, mas o final (postergado, ao máximo) de um processo
que começou com a proibição do tráfico negreiro entre a África e o
Brasil. E contou com a instituição de garantias prévias para que os
proprietários rurais tivessem mão-de-obra farta e à disposição mesmo
após a assinatura que condenou o trabalho escravo à ilegalidade. Para
entender esse processo, portanto, é necessário voltar no tempo e
recoorrer aos acontecimentos do início do século 19. Não apenas àqueles
decorrentes da mudança da família real para o Brasil, mas também à
expansão da Inglaterra industrial pelo mundo (a foto abaixo é de um trabalhador queimado com ferro de marcar gado no Pará, no ano passado).
Trabalhador denunciante afirma ter sido marcado a ferro quente pelo
patrão e dois capangas quando exigiu pagamento de salários atrasados
A despeito
dos acordos internacionais, tanto a Coroa portuguesa quanto o governo
imperial brasileiro que a sucedeu não tornaram efetivas as promessas
para encerrar o tráfico de escravos. A Inglaterra, que teve um papel de
mediação no processo de independência do Brasil, continuou pressionando a
nova administração por medidas duras para acabar com o tráfico
negreiro. Exigiu em um tratado de 1826, ratificado em 1827, que o país
proibisse o comércio humano em três anos. Em 1831, o Brasil realmente
promulgou a lei que proibiu o tráfico de pessoas da África e declarou
livre os cativos que desembarcassem nos portos do país após aquela data.
É claro que a lei permaneceu como letra-morta em função do
fortalecimento da influência dos proprietários rurais após a abdicação
do imperador Pedro I no mesmo ano.
Pois, como afirmou Caio Prado
Júnior, a escravidão constituía a mola mestra da vida no país,
repousando sobre ela todas as atividades econômicas. A produção
nacional, voltada para atender às necessidades de gêneros alimentícios
(como o café) e matérias-primas para uma Europa em plena marcha
industrial, dependia do trabalho servil. Em decorrência disso, por mais
que houvesse um crescente descontentamento da opinião pública
esclarecida com o trabalho escravo, era enérgica a defesa de sua
manutenção pelo setor produtivo. Afinal de contas, não havia no
horizonte visível uma opção (que não desmontasse o sistema) para
substituir esse tipo de mão-de-obra. E a importação era a única forma de
suprir o aumento da demanda por força de trabalho e mesmo sua
reposição, haja vista que a reprodução da mão-de-obra escrava em
cativeiro era insignificante.
Na sociedade escravista, o
trabalhador não possuía a propriedade de sua força de trabalho. Não
tinha liberdade para vendê-la a quem garantisse melhores remuneração ou
condições de subsistência, estando atado a uma pessoa ou empresa pelo
tempo de sua vida. Era mercadoria. E, por ser mercadoria, também era
patrimônio. A riqueza de um homem era comumente medida pela quantidade
de escravos que possuía. Mas um patrimônio com natureza diferente,
comprado pelo fazendeiro em um mercado de força de trabalho, do qual
aquele acaba por ser dependente e refém.
O escravo-mercadoria se
tornava objeto de lucro pelo comércio internacional antes mesmo de
começar a produzir. Ao investir determinada soma de dinheiro na compra
de força de trabalho, um fazendeiro tinha em mente que ele teria que
buscar um retorno equivalente ou superior à quantidade de recursos
necessários para a manutenção da mão-de-obra somada aos recursos que ele
investiu em sua compra mais a taxa de juros que ele ganharia caso
investisse o mesmo valor no mercado. Caso contrário, o negócio não
valeria a pena.
Na primeira metade do século 19 já era possível
prever que o fim da escravidão era apenas uma questão de tempo no
Brasil. Tanto as pressões externas quanto internas apontavam para uma
mudança no tipo da força de trabalho utilizada na produção, o que, sem
dúvida nenhuma, era condição fundamental para o desenvolvimento
econômico e social do país. A dúvida seria como e quando essa mudança
aconteceria e a qual custo – toda alteração no curso de um sistema tem
um custo, que é ponderado no momento de tomar decisões de adoção de
políticas por gestores. Um fator interno que contribuiu para que esse
balanço de fatores pendesse para o fim do tráfico foi a situação exposta
acima pelo sociólogo José de Souza Martins. Os comerciantes de escravos
haviam se tornado proeminentes figuras financeiras, tendo os
proprietários rurais do país como seus devedores. A sujeição econômica a
essa classe, que já não gozava de boa reputação e imagem pela
sociedade, trazia insatisfação aos produtores.
Vale lembrar que,
externamente, o país já enfrentava problemas com a abordagem
internacional de seus navios, sendo eles transportadores de escravos ou
não. A justificativa de impedir o tráfico era usada mesmo quando as
embarcações estavam de acordo com o acordos ingleses. Em 1845, o
parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, declarando legal o
aprisionamento de qualquer embarcação utilizada no tráfico e a sujeição
de seus ocupantes ao julgamento por pirataria. Os navios eram caçados
não apenas em alto mar, mas também em águas abrigadas do Brasil e nos
seus portos.
Em 1850, o governo brasileiro finalmente adota ações
eficazes para coibir o tráfico transatlântico de escravos, com a adoção
de leis e ações. Os resultados puderam ser sentidos rapidamente: em
1849, 54 mil escravos entraram no país. O número caiu para 23 mil em
1850, 3 mil em 1851, pouco mais de 700 em 1852, para acabar então
definitivamente.
Nos anos seguintes, foram tomadas medidas que
libertaram crianças e sexagenários. O que, na verdade, serviu apenas
como distrações para postergar o fim da escravidão. Os escravos que
conseguiam chegar aos 60 anos já não tinham condições de trabalho e eram
um “estorvo'' financeiro para muitos fazendeiros que os sustentavam. Já
os filhos dos escravos não possuíam autonomia para viver sozinhos.
Muitos, até completarem 18 anos, foram tutelados (e explorados) pelos
proprietários de seus pais. Além disso, uma corrente de tráfico interno
vendia escravos do Nordeste para suprir a crescente produção de café no
Sudeste.
Mas, por mais que fosse postergada, com o fim do tráfico
transatlântico, a propriedade legal sob seres humanos estava com os dias
contados. Em questão de anos, centenas de milhares de pessoas estariam
livres para ocupar terras virgens – que o país tinha de sobra – e
produzir para si próprios em um sistema possivelmente de campesinato.
Quem trabalharia para as fazendas? Como garantir mão-de-obra após a
abolição total?
Vislumbrando que, mantida a estrutura fundiária do
país, o final da escravidão poderia representar um colapso dos grandes
produtores rurais, o governo brasileiro criou meios para garantir que
poucos mantivessem acesso aos meios de produção. A Lei de Terras foi
aprovada poucas semanas após a extinção do tráfico de escravos, em 1850,
e criou mecanismos para a regularização fundiária. As terras devolutas
passaram para as mãos do Estado, que passaria a vendê-las e não doá-las
como era feito até então.
O custo da terra começou a existir, mas
não era significativo para os então fazendeiros, que dispunham de
capital para a ampliação de seus domínios – ainda mais com os excedentes
que deixaram de ser invertidos com o fim do tráfico. Porém, era o
suficiente para deixar ex-escravos e pobres de fora do processo legal.
Da mesma forma, a lei proibia que imigrantes que tiveram suas passagens
financiadas para vir ao Brasil (ato comum na política de imigração)
comprassem terras até três anos após a sua chegada. Ou seja, mantinha a
força de trabalho à disposição do serviço do capital.
Os preceitos
da lei não foram necessariamente respeitados, principalmente por quem
possuía recursos para isso. Afinal, ela não havia sido criada para impor
ao capitalismo brasileiro um problema, mas sim garantir o seu
florescimento. De acordo com Emília Viotti da Costa, os ocupantes de
terras e os possuidores de títulos de sesmarias ficaram sujeitos à
legitimação de seus direitos, o que foi feito em 1854 através do
“registro paroquial''. O documento validava a ocupação da terra até essa
data. Com isso nasceu uma indústria da falsificação de títulos de
propriedades, com a participação de cartórios. Familiar aos
proprietários de terra, os procedimentos para isso eram inatingíveis ao
ex-escravo ou ao imigrante, por desconhecimento ou falta de recursos
financeiros para subornar alguém.
Com o trabalho cativo, a terra
poderia estar à disposição para livre ocupação. Porém, com o trabalho
livre, o acesso à terra precisava ser restringido. A existência de
terras livres garante produtores independentes e dificulta a
centralização do capital e da produção baseada na exploração do
trabalho. Com o fim do tráfico e o livre mercado de trabalho despontando
no horizonte, o governo brasileiro foi obrigado a tomar medidas para
impedir o acesso à terra, mantendo a mão-de-obra reprimida e alijada de
seus meios de produção.
Dessa maneira, a Lei de Terras, nascida do
fim do tráfico de escravos, está na origem da atual exploração do
trabalhador rural e, portanto, da escravidão contemporânea. As
legislações que se sucederam a ela e trataram do assunto apenas
reafirmaram medidas para garantir a existência de um contingente reserva
de mão-de-obra sem acesso à terra, mantendo baixo o nível de
remuneração e de condições de trabalho. Com a Lei de 1850 estava
formatada uma nova estrutura – em substituição àquela que seria extinta
em maio de 1888 – para sujeitar os trabalhadores.
Porém, ela
também resolveu outro problema crucial: ao dificultar o acesso e
legalizar a posse, criou valor para algo que até então não o possuía – a
terra. Como não era um objeto passível de ser comercializado, a fazenda
consistia, em um primeiro momento, no locus onde ocorria a exploração
e, dali em diante, no trabalho acumulado dos escravos – traduzido em
mercadorias e benfeitorias. Martins explica que a lei possibilitou,
dessa forma, a transferência da garantia dada ao mercado de crédito da
propriedade dos escravos para a propriedade da terra. Esse momento é
decisivo. O trabalho, liberto da condição de renda capitalizada, deixa
de fazer parte do capital para se contrapor a ele. Não era mais preciso
comprar a capacidade de gerar riqueza: com o fim do direito à
propriedade privada sobre seres humanos, o capital também ganha a
liberdade. Com a diferença de que poderia usufruí-la melhor do que os
antigos escravos.
No dia 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, o
Estado deixou de reconhecer o direito de propriedade de uma pessoa sobre
outra. Contudo, isso não significou que todas as relações de trabalho
nas sociedades regidas pelo capital passariam a ser guiadas por regras
de compra e venda da força de trabalho mediante assalariamento, com
remuneração suficiente para a manutenção do trabalhador e de sua
família.
O fim da escravidão não representou a melhoria na
qualidade de vida de muitos trabalhadores rurais, uma vez que o
desenvolvimento de um número considerável de fazendas continuou a se
alimentar de formas de exploração semelhantes ao período da escravidão
como forma de garantir uma margem de lucro maior ao empreendimento ou
mesmo lhe dar competitividade para a concorrência no mercado.
Dois
casos de utilização de formas de exploração semelhantes ao trabalho
escravo, mas que não envolvem propriedade legal de um ser humano sobre
outro, tornaram-se referência no pós-Lei Áurea. O primeiro é o dos
nordestinos levados a trabalhar na florescente indústria da borracha na
Amazônia. O segundo o dos colonos estrangeiros trazidos para as fazendas
de café do interior do Estado de São Paulo. Pela descrição da situação,
é possível constatar que há um padrão na forma de exploração desses
trabalhadores, que continua praticamente o mesmo nos dias de hoje – a
servidão por endividamento ilegal. Como esse padrão se repetia em
diversos países, ele foi objetivo de discussões internacionais e
definido em convenções da Organização Internacional do Trabalho.
Após
1850, as exportações de borracha cresceram no Brasil devido ao aumento
na demanda internacional pelo produto após o desenvolvimento do processo
de vulcanização, que aumentou a sua resistência e ampliou as
possibilidades de moldagem. Entre 1881 e 1890, representava 8% do total
de exportações do país e ocupava o terceiro lugar entre os produtos mais
vendidos. Vinte anos depois (1901-1910), a borracha passou a 28% do
total de exportações. Isso levou o luxo à região amazônica, onde estavam
concentrados os seringais – riqueza esta extraída do trabalho de
migrantes nordestinos, muitos deles fugidos da seca que atingiu o
Nordeste entre 1877 e 1880. O relato de Caio Prado Júnior vale para
aquela época, mas descreve esse padrão que continua até os dias de hoje:
“As
dívidas começam logo ao ser contratado: ele adquire a crédito os
instrumentos que utilizará, e que embora muito rudimentares, estão acima
de suas posses em regra nulas. Freqüentemente estará ainda devendo as
despesas de passagem desde sua terra nativa até o seringal. Estas
dívidas iniciais nunca se saldarão porque sempre haverá meios de fazer
as despesas do trabalhadores ultrapassarem seus magros salários. E
quando isto ainda não basta, um hábil jogo de contas que a ignorância do
seringueiro analfabeto não pode perceber, completará a manobra.
Enquanto deve, o trabalhador não pode abandonar o seu patrão credor;
existe entre os proprietários um compromisso sagrado de não aceitarem a
seu serviço empregados com dívidas para com outro e não saldadas''. E
utilizava-se a força para manter o trabalhador no serviço.
Com o
final do tráfico negreiro, deu-se o início da implantação de regimes de
parceria em várias fazendas de café, trazendo colonos europeus para o
serviço. Vale lembrar que a escravidão estava historicamente enraizada
em toda sociedade, que girava em torno dela. Portanto, era claro que a
relação fazendeiro/escravo demoraria a ser substituída pela
patrão/empregado tanto ideologicamente quanto na prática – ou talvez que
nunca venha a se realizar plenamente. Um exemplo citado por José de
Souza Martins é o da firma Vergueiro & Cia, que contratou imigrantes
para executar o serviço:
“Na parceria, conforme o contrato
assinado com os colonos suíços, “vendido o café por Vergueiro & Cia
pertencerá a estes a metade do seu produto líquido, e a outra metade ao
(…) colono. Entretanto, o parceiro era onerado em várias despesas, a
principal das quais era o pagamento do transporte e gastos de viagem
dele e de toda a sua família, além da sua manutenção até os primeiros
resultados do seu trabalho. Diversos procedimentos agravavam os débitos,
como a manipulação das taxas cambiais, juros sobre adiantamentos,
preços excessivos cobrados no armazém (em comparação com os preços das
cidades próximas), além de vários abusos e restrições que, no caso da
[fazenda] Ibicaba, logo levaram a uma rebelião. Esses recursos
protelavam a remissão dos débitos dos colonos, protelando a servidão
virtual em que se encontravam''.
O colono não entrava no mercado
de trabalho livre para vender sua força. E se estivesse insatisfeito com
o patrão, teria que procurar outro que comprasse suas dívidas. Perante a
lei, estavam livres, contudo, economicamente, eram similares a
escravos. A experiência da Vergueiro & Cia gerou insatisfação por
parte dos colonos, temor por parte dos fazendeiros que receavam que
insurreições como a ocorrida nessa fazenda em 1856 se repetissem e mesmo
desconfiança de outros países fornecedores de mão-de-obra. Situações
como essa se repetiram ao longo de décadas até que a prática da
imigração para o colonato estabelecesse um modus operandi que contou com
a participação do governo. Este passou a subvencionar o transporte dos
estrangeiros de seu país de origem até o Brasil, diminuindo os problemas
com o endividamento. Os colonos esperavam obter no trabalho das
fazendas de café recursos suficientes para adquirirem sua própria terra.
O colonato passou a ser visto, e incentivado, como uma etapa necessária
para independência econômica.
A exploração degradante e ilegal do
trabalho continuou. Ao analisar a situação do colonato do café entre o
final do século 19 e início do século 20 no Brasil, Martins afirmou que a
propriedade capitalista da terra assegurava ao fazendeiro a sujeição do
trabalho e, ao mesmo tempo, a exploração ilegal de seres humanos.
Apesar
de trabalharem para a fazenda, os colonos atuavam como arrendatários,
ficando cada grupo com um pedaço da fazenda, cuidando do cafezal e
entregando o produto para o proprietário da terra. Para isso, eram
remunerados abaixo do valor do seu serviço e de forma insuficiente para
garantir sua subsistência, tendo que utilizar as terras entre os
cafezais ou próximas deles para produzir seus alimentos. O trabalho
absorvido na formação da fazenda de café era convertido em capital na
forma de cafezais. Dessa forma, ela produzia a partir de relações
não-capitalistas de produção boa parte de seu capital.
Durante
todo o século 20, a servidão por dívida utilizada contra os seringueiros
e os primeiros imigrantes do café consolidou-se como uma das formas
empregadas para reprimir a força de trabalho nas situações de expansão
do capital sobre formas não-capitalistas de produção. Não há estimativas
confiáveis do número de escravos no país hoje. Alguns levantamentos
falam de 25 mil, outros de 40 mil. O fato é que de 1995 até hoje, mais
de 33,5 mil pessoas já foram libertadas em operações dos grupos móveis
de fiscalização do governo federal, responsáveis por apurar denúncias e
libertar trabalhadores.
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