Frei Betto lembra que o escritor não cedeu ao
computador, preferia tecer à mão os seus belos textos
por Frei
Betto
25/07/2014
6:00 / Atualizado 25/07/2014 9:08
Em setembro de 2005 fui a Mossoró
receber a Medalha da Abolição, concedida pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Na mesma solenidade, Ariano Suassuna mereceu o título de
doutor honoris causa.
No voo entre Natal e Mossoró, falamos
do que Ariano mais temia: viagem de avião. Conversa de corda em casa de
enforcado. Contei-lhe que, um dia, perguntei ao meu mecânico se já havia
viajado de avião. Seu Jorge parou de mexer no carburador e me olhou de banda:
— Então, seu Betto, eu vou lá entrar
num veículo que anda lá em cima e a oficina fica aqui embaixo?
Ariano disse que amigos tentavam
consolá-lo, afirmando que, segundo as estatísticas, há mais acidentes de carros
que aéreos.
— Disraelli dizia — lembrou o autor de
“Auto da Compadecida” — que há três tipos de mentira: a comum, a deslavada e a
estatística. Se esta diz alguma coisa, que me mostrem quantos escaparam de
acidente de carro e quantos de desastre de avião. Um amigo ponderou: “Você
viaja de carro e, de repente, cai num buraco de estrada. Lá em cima não tem
buraco”. Ao que retruquei: “Lá em cima é pior, o avião avança e o buraco segue
embaixo”.
No discurso de agradecimento à
universidade, Ariano reproduziu a nossa conversa aérea e discorreu sobre as
cantorias do Nordeste.
Ariano nunca cedeu ao computador. Nem à
máquina de escrever. Preferia tecer à mão os seus belos textos literários. Por
isso, foi convidado a participar de um evento no Recife, onde seriam
apresentados os avanços da informática e, de quebra, a presumível morte do
livro, decretada pelo advento do maravilhoso e-book.
— Quando o japonês mostrou toda aquela
parafernália — contou-me Ariano — eu indaguei: “Então é nisso que vou ler
livros? E quando quiser ir ao banheiro, carrego junto essa joça? Levo isso para
a cama a fim de ler antes de dormir? E se cai no chão? E se a energia acaba?”.
O japonês ficou apertado de costura, insistindo em justificar o avanço da
tecnologia. Propus um teste: “Já que você diz que vamos fazer livros nesse
troço aí, vamos ver como ele escreve textos. Redija aí o meu nome: Ariano
Villar Suassuna”. O japonês digitou o Ariano e o bicho aceitou. Digitou o
Villar e o diabo fez aparecer o corretor apontando erro e sugerindo vocábulo
aproximado — “Vilão”. Em seguida, digitou Suassuna. Mesma coisa. O vocábulo
aproximado era “Assassino”. Eu disse: “Como vou escrever numa coisa que me
chama de Ariano Vilão Assassino?”.
Para azar do representante de um grande
provedor nacional, quando no evento ele exibiu um verso de Camões, retirado da
internet, Ariano recitou o poema inteiro. “Eu tenho memória de cão vingativo”,
confessou-me ele.
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