A artista plástica Juliana Notari foi alvo de ataques após esculpir uma vulva de 33 metros de altura e seis metros de profundidade em um montanha, na zona da mata pernambucana.
O que fazem com a vulva é só uma amostra do que acontece com a mulher, de corpo inteiro.
É curioso uma xoxota gigante causar tanta polêmica. É a primeira imagem que vemos ao nascer.
Os conservadores que atacam a obra são os mesmos que lutam contra o aborto. Usam a desculpa de defender a vida, mas se esqueceram que a vida começa justamente pela vulva.
Tanto que muitos povos antigos a consideravam um símbolo sagrado. A Vênus de Willendorf, escultura de 22.000 a.C., representa a mulher com a vulva hipertrofiada. Já se faziam bocetas gigantes na pré-história, mas os homens da caverna eram mais liberais que o tribunal da internet.
Ao longo dos séculos, ela foi julgada e reprimida. Precisou se esconder, se depilar e ser "recatada e do lar". Chamaram até pelo nome de outra região do órgão reprodutivo: "vagina". É como se chamassem o pênis de "vesícula seminal". Mais brochante, impossível.
Suas representações artísticas também foram censuradas. Foi coberta por um chumacinho de cabelo, na Vênus de Botticelli. Um paninho, nas banhistas de Renoir. Até que sumiu, como aconteceu na boneca Barbie. Enquanto isso, o equivalente do sexo oposto virou o centro das atenções. Passou a ser chamado de pênis, pau, piroca, pica, jeba, mala do Frota. "Caralho" virou até elogio.
Sua forma ereta foi espalhada pelas capitais do mundo, na forma de obeliscos. Os ingleses são pontuais porque olham para uma piroca gigante para conferir as horas. Até o Borba Gato segura uma jeba gigante, numa representação descarada da autoestima do homem hétero feio.
Mas o que fazem com a vulva é só uma amostra do que acontece com a mulher, de corpo inteiro. Há séculos nos mantêm escondidas, envergonhadas e depiladas. Nos chamam de putas e feias.
Talvez, devamos voltar ao início. Já que viemos da vulva, está na hora de abrir os lábios (com o perdão do trocadilho ruim, não resisti) e falar dela de peito aberto, ou melhor, de pernas abertas (desculpem mais uma vez, não consigo me controlar).
Vamos libertá-la e explorá-la livremente. Falando dela sem pudor, podemos nos conhecer, ter prazer e, quando necessário, dizer não.
Comecemos pelo nome verdadeiro: VULVA!
Flávia Boggio
Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.
Diário de Pernambuco
Vulva escavada em montanha de PE repercute no mundo: 'Mexeu com raízes históricas'
Recoberta de concreto armado e resina em cor vermelha, uma fenda escavada numa montanha em Água Preta, na Mata Sul de Pernambuco, ganhou repercussão em todo o mundo por representar uma vulva que sangra. A land art (tipo de arte em que o terreno natural se integra à obra) Diva, da artista e pesquisadora recifense Juliana Notari, foi realizada dentro do terreno da Usina da Arte, que antes abrigava a Usina Santa Terezinha, e ganhou essa propulsão inesperada através das redes sociais por diversas reações, sobretudo pelo incômodo causado pelo tabu que envolve a figura da vulva (em contraponto à cultura do falocentrismo). Para a artista, Diva fala sobre "feridas coloniais", levantando "traumas da violência" ligadas ao patriarcalismo.
The Guardian (Reino Unido), CNN (EUA), Reuters (agência de notícias), Wion News (India) e o portal Yahoo chinês foram alguns dos veículos internacionais que publicaram notícias sobre a obra. "Eu não imaginava que fosse ter essa repercussão toda. A obra reverberou pois mexeu em raízes históricas, em camadas, em debates, com esse alcance internacional. O papel da arte é esse. É passível de críticas. Só não podemos ir para a baixaria, para os ataques", diz Juliana, em entrevista ao Diario de Pernambuco por telefone, entre as inúmeras entrevistas que deu nesta segunda-feira (4). A artista afirmou que perdeu o controle da repercussão. "Isso é bom, mas fico preocupada com minha saúde mental", confessa.
A carreira de Juliana Notari é marcada por uma abordagem multidisciplinar que encara tons biográficos e confessionais, agregando traumas, medos, fantasias e desejos. A figura da vagina já está presente em sua obra nos últimos 20 anos, sendo presente na performance Dra. Diva (2006), na série de quadros Ferida da Bienal (2008), na intervenção urbana Spalt-me (2009) e na videoperformance Amuamas (2018). Diva nasceu de um convite do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), iniciando uma nova temporada de obras dentro da Usina das Artes. "Fiz uma residência, passei um tempo conhecendo o local, convivendo, para poder pensar em uma obra. Foi um trabalho exaustivo, grande, com muita mão de obra. Foi legal porque empregou a população local e tudo mais", conta.
Imagem de Juliana Notari entre os trabalhadores causou reações negativas. |
Em publicação nas redes sociais para divulgar a obra concluída, Juliana incluiu uma foto do processo da construção. A presença de trabalhadores negros, em contraponto com a artista branca, foi uma das constrovérsias envolvendo a obra, mostrando o cerne de privilégio racial que envolve o universo da arte. Sobre esse ponto, Juliana falou: "Quando olhamos para essa foto específica, vemos os negros nesse contexto por conta de um processo histórico. Isso é terrível, pois os negros não tiveram difeito à terra, ficaram marginalizados, sem acesso à educação ou cultura. A arte também está dentro desse contexto e reproduz esses padrões. O meu maior problema não é jogar essa conta na Diva, é um problema estrutural brasileiro."
Uma outra discussão envolvia pessoas trans, pois a vulva como uma "exaltação de feminilidade" excluiria algumas identidades de gênero. Para Juliana, no entanto, as únicas críticas nocivas são aquelas que "partem para o ataque". "Esse tipo de coisa vem ocorrendo há algum tempo no Brasil, mas com o bolsonarismo a coisa vem ficando mais odiosa. O ataque que estou sofrendo vem disso. Não são críticas construtivas que estão elevando o debate", desabafa Notari.
No Brasil, um certo clima de censura de obras artísticas vem ganhando corpo desde a meados de 2017, a exemplo dos casos da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, e da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, no Festival de Inverno de Garanhuns, em Pernambuco. Mas a polêmica em torno de obras que representam órgãos sexuais é mais antiga. Em 1999, por exemplo, o projeto original da fálica Torre de Cristal, que reina no Parque de Esculturas de Francisco Brennand, também causou controvérsia a ponto do então prefeito do Recife Roberto Magalhães entrar armado na redação de um jornal para intimidar um colunista que supostamente ironizou o tema em nota. A Torre de Cristal, inclusive, tem 32 metros. Diva tem 33 metros de comprimento e 6 de profundidade. Segundo Juliana, esse tamanho comparativo foi "apenas uma coincidência".
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