quarta-feira, 16 de março de 2016

Não fui

Marcelo Coelho

A memória prega muitas peças na gente. Lembro com exatidão, contudo, que fui dos últimos na Folha a defender a saída de Fernando Collor. Não tinha votado nele em 1989; escolhera Lula, como sempre fazia.
Verdade que (disso também não me esqueço) torcia moderadamente para que ele perdesse: o PT daqueles tempos era radical demais. Tratava-se, na minha opinião, de criar um partido de esquerda consistente, sem pensar numa imediata tomada do poder.
No fundo, eu votava (e voto ainda) mais por uma questão de identidade pessoal do que na atitude de quem imaginariamente nomeia, sozinho, o futuro presidente do país.
Instalado o governo Collor, foi o que se viu. Com alguma "raiva democrática", eu batia o pé até o fim. "Não elegeram o sujeito? Agora que aguentem até o fim."
Nunca tínhamos passado por um impeachment, e a alternativa parecia até mais traumática do que hoje. Mal tínhamos saído da ditadura. Democracia é isso mesmo, eu argumentava. Nem bem começamos e já queremos virar o jogo?
Disso tudo eu recordo com clareza. Mas tinha também a impressão (e aí começam as traições da memória) que, na época de Collor, não havia praticamente ninguém contra o impeachment. A rejeição a Collor, na minha cabeça, era universal em 1992 —e hoje, com certeza, o país está mais dividido no assunto PT.
Os dados das pesquisas não confirmam, entretanto, essa lembrança. Em 30 de agosto de 1992, um mês antes do impeachment, a Folha noticiava que 71% (e não 99%, como eu pensava) eram favoráveis à renúncia de Collor.
O levantamento se limitava à cidade de São Paulo, sendo de imaginar que em cidades menores e lugares mais distantes o ímpeto oposicionista fosse ainda menor.
Ou seja, havia uma enorme maioria contra o presidente, mas não era tão esmagadora quanto eu pensava. Poderíamos dizer que o país "estava dividido" naquela época? Não parecia.
Agora, parece mais. Collor foi apenas um fenômeno eleitoral, e os setores fiéis a Lula e ao PT, embora muito diminuídos, continuam articulados e ruidosos.
Formulo duas ou três questões. Esses setores vão engolir um impeachment? Ou uma renúncia? Qual sua capacidade de minar um eventual governo "de consenso" com Temer, PSDB, PPS e todo o resto? Talvez pequena -nisso se baseia o otimismo dos que veem na renúncia a solução mais indicada.
Outro problema será a continuidade da Lava Jato. Poucos integrantes de uma coalizão pós-Dilma estariam a salvo de novas investigações. A incerteza no ambiente econômico, embora mitigada por um possível pacote de medidas, não desaparece.
É certo, por outro lado, que Dilma e o PT teriam de fazer milagres para continuar até o fim do mandato. A ladeira desce vertiginosamente. Continuam achando que as manifestações são só coisa de riquinhos e tucanos.
A proporção de pessoas com curso superior (77%) e com mais de 20 salários mínimos de renda (13%) é expressiva entre os manifestantes na Paulista -contra 28% e 3%, respectivamente, desses grupos no total da população do município.
Mas a impopularidade de Dilma e o apoio à sua renúncia são majoritários em toda a população. Dizer que os protestos de domingo passado foram "produzidos" e "segmentados", como fez o ministro Jaques Wagner na segunda (15), poderia quem sabe valer também para os comícios das Diretas Já ou contra Collor.
Volto sempre ao passado. Imagino que atitude eu teria se fosse jornalista em fevereiro de 1964. O governo Goulart estava em crise terminal. Os riscos de conflito civil eram maiores do que hoje.
Eu viveria décadas de vergonha e arrependimento se tivesse apoiado o golpe. Havia dois lados, cada qual com defeitos enormes, mas não gostaria de ter ficado com os militares.
Há dois lados hoje —mas felizmente não há militares. Talvez eu esteja apenas comparando coisas que no fundo são diferentes.
Detesto a ideia do "tapetão". Gostei quando militantes vaiaram Aécio na Paulista: não se trata de ganhar na rua o que se perdeu no voto.
Por que vaiaram? Pode ser que gostem de Sérgio Moro, o que acho bom. Pode ser que gostem de Bolsonaro, o que acho assustador. A manifestação de domingo foi grande demais para ser tomada em bloco —havia muita coisa ali dentro.
Quanto a mim, fico de fora. Observo de longe. Há lugares piores para ficar.

 

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