segunda-feira, 11 de agosto de 2025

TEMPO MENINO - Conto inédito de Roberto Almeida


Eu apenas batí um papinho com Roberto Almeida, sobre uma música de Dominguinhos que gosto muito, lembra até um pouco de minha infância. O jornalista Roberto, me dedicou o que chamo de conto. E é!

Quem não pulou cerca e tirou espinhos? Escute Tempo Menino, e saiba.

Ele foi ágil, igual um repentista, na escrita dele, talvez não haja o improviso, porém a rapidez do seu cérebro diz que quem sabe escrever, sabe mesmo.

Obrigado parceiro Roberto Almeida

*Dedicado ao amigo Marcos Moura, que me passou a canção de Dominguinhos e sugeriu a história.
Banho, beira de rio, arapuca no mato. Quando menino pulei cerca e tirei espinhos. Carrapicho nas canelas. Na mão ninho de passarinho. (Tempo Menino, Dominguinhos).


A vila não tinha nem 300 casas. Água, quando Deus mandava. Energia vinha do motor, que vez por outra quebrava e deixava todos no escuro. Com medo de assombração.

No outro dia o sol brilhava, e os meninos corriam pela calçada; um faz de conta sem fim, a inocência, a felicidade de quem não tem de se preocupar com as doenças do mundo ou os preços dos alimentos.

Gostava de sair pelos matos, ver passarinhos, até que um dia uma cobra coral apareceu do nada; foi um medo dos diabos, saiu na carreira.

Aquele dia parece ter ficado marcado. Adulto, sonhava sempre com serpentes assustadoras, cada uma pior que a outra, provocando calafrios, fazendo-o acordar suado.

Um dia os homens chegaram com os postes, espalharam eles pelo chão. Aprendeu a andar de bicicleta em meio a essas transformações.

E corria na chuva, admirava o riacho que se formava quando as águas vinham fortes. Os adultos diziam que elas iam em direção a São Bento. Sem noção de como era esse lugar de nome de santo.

Uma quinta, véspera da feira, chegaram uns parentes da mãe, vindos das bandas de uma cidade chamada Angelim. Achou o nome bonito, a curiosidade de menino imaginando como seria esse recanto recém apresentado aos seus saberes geográficos.

Para sair, viajar, só se fosse no jipe verde, que uma vez o levou, roncando, durante à noite, para um sítio distante; uma viagem que nunca parecia acabar, o sono tomando conta.

Esse era o seu mundo. Jogar futebol, até chegar a idade de frequentar também o sinuca, com as bolas vermelhas, uma branca, outra amarela, preta, roxa...

Os homens crescidos fazendo apostas em redor da mesa verde.

Avôhai não tinha medo das cobras. Um dia apareceu uma, que deve ter vindo na lenha do fogão. Ele a enfrentou com uma chaleira de água fervendo, a bicha entrou pelo ralo, se retorcendo.

No sítio tinha pés de graviola, de manga, caju, pinha, jabuticaba, jaca. Fazia a festa quando ia por lá, levado pelos pais.

Preferia o sítio, as brincadeiras, às missas. Mas ia, levado pelo braço, com medo do padre e do fogo do inverno.

Quando começaram os bailes, os assustados, era pequeno. Os irmãos iam ele ficava só na vontade. Desejava crescer logo e aprender a dançar, se a timidez deixasse.

Com oito anos ouviu na rádio Difusora um cantor mandar tudo pra o inferno. O bispo achou aquilo uma heresia. Em silêncio discordou, achou a música tão bonita.

No ano seguinte a mesma voz voltou com uma história de estar amando a namoradinha do amigo. Ouvia, gostava. Entre quilos de açúcar e barras de sabão.

Chegava um e depois outro, no empório. Procuravam alimento pra rádio, gillette, bombril e fósforos.

E umas mulheres da roça, de lenço na cabeça, querendo café torrado.

Na Semana Santa, quando era proibido tomar banho, a procura era pelo peixe e bacalhau.

Em casa se fazia umbuzada e feijão de coco. Comer carne era pecado. O rádio ficava desligado. Era preciso sofrer, em respeito ao filho de Nosso Senhor.

E tinha uma senhora que corria bicho, falava-se em papa figo, motoristas contavam mentiras falando da Serra das Russas, a caminho do Recife, cidade longe e desconhecida.

Um seresteiro animava a noite com canções de Nelson Gonçalves.

Aos seus olhos (e ouvidos) ele era tão bom quanto o boêmio. Podia também ter sua voz espalhada pelas ondas de rádio.

Aos domingos o campo de futebol - que orgulhosos os moradores da vila chamavam de estádio - ficava rodeado de torcedores.

O time local, com reforços de Garanhuns, fazia bonito, até mesmo contra equipes da capital.

Mané Cabeludo, com seus dribles desconcertantes, deixava todos - principalmente os meninos - encantados.

E Touro marcava gols com uma facilidade que impressionava.

Nos dias de festa tinha direito a roupa nova, calçava sapatos, sentia-se diferente. Como se tivesse crescido um pouco.

Até um cinto botava nas calças. Uma camisa toda colorida que resistiu ao tempo.

Espinhos, quando pequeno, só os do mato, que causavam ferimentos leves, pequenos.

Os outros, piores, só viriam lhe atormentar com o passar dos anos.

O velho mais rico da cidade, seu padrinho, fumava que só uma caipora. Adoeceu gravemente, mas não largou o Continental.

- Os que preferiam o fumo de corda, com aquele cheiro bom, corriam o mesmo perigo?

Lembrava ainda da primeira escola, da professora que sabia tudo, do lanche e das brincadeiras no recreio.

Quando menino passarinho, na verdade, tudo era alegria. A vida era uma festa.

Sem dinheiro, sem lenço, sem documento, pobre de conhecimentos e rico em imaginação.

Até que o tempo fez com os meninos o que a vida sempre faz: tornou eles mudos, mesmo quando falantes, e hoje sofrem muito mais.

*Ilustração: Reprodução do desenho de Elifas Andreato para a capa do disco "Tempo Menino", de Dominguinhos.

Um comentário:

  1. Obrigado Marcos Moura. A partir de sua dica procurei refletir como era a vida de menino, nas décadas de 60 e 70, em cidades como Capoeiras, Caetés, São João ou Angelim. O conto teve a pretensão de expressar essas vivências. Abraço para você e seus leitores.

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