sábado, 28 de abril de 2018

ARTIGO DE UM FILHO II

Samuel

                                          DOIS ANOS SEM PAPAI
                                UM ORIGINAL SAMUEL SALGADO
Sr. DIOCLÉCIO
Tenho a desconfortável sensação que lentamente vai se arrastando esta madrugada nostálgica de 08 de setembro de 2003. Parece não ter fim. Há uma rotatividade de sentimentos. Como o tempo passou ligeiro! Já se vão dois anos da morte de papai! O hoje chegou tão depressa que logo, logo vai se tornar no ontem. Sentado diante do computador começo a digitar as palavras, juntando pedaços do que foi selecionado pela memória ao longo desse período. Estou só. Não quero companhia. Neste instante de inevitáveis emoções meus olhos marejam, retratando, exatamente, o lado perverso da vida. Respiro fundo. Controlo-me. Voluntariamente, deixo que as lembranças tomem conta de mim. São recordações que mexem comigo. A dor da sua perda ainda é muito forte. Vou carregar para sempre a marca indelével dessa dor que não tem tamanho. Assim, lá vou eu pelos caminhos da vida, enganando a tristeza o quanto posso, lutando contra a angustiante realidade de sua ausência. Minha alma chora. Ah! Quanta saudade! A saudade é tão grande que, às vezes, dá a impressão que o tempo vai voltar. Saudade é reviver o passado. Para tanto, vale qualquer coisa... relembrar um gesto, um olhar... remexer velhos papéis, fotos antigas, desbotadas pelo tempo... pedaços de sentimentos... ele gostava tanto de escrever poesias! Nos momentos de inspiração, recolhia-se ao seu quartinho nos fundos da casa e, rapidamente, dava um sentido poético na montagem das palavras. Nessas ocasiões liberava o imaginário, expressava os sentimentos da alma. Fez versos que enternecem. No seu versejar tratou de temas como a vida, a dor, enfim externou sua fértil imaginação. Num instante de êxtase poético, discorreu sobre os caminhos da vida demonstrando toda sua convicção religiosa, da seguinte forma:



“Esta vida é uma ilusão, Um passa tempo sem sentido, Nosso tempo é consumido Mais da metade em vão Quando se tem boa intenção E no futuro tem fé Mantendo sempre de pé Um objetivo com firmeza Pode-se ter a certeza De que Deus refúgio é.” 

Neste verso, manifestou um período, rapidamente superado, em que, durante a velhice, a angústia habitou sua alma: 

“É triste ter longa vida Pois é de pior a pior Nada pode vir de melhor Na vida a ser vivida.” 

A morte do neto Juninho, impôs-lhe a marca do sofrimento, abrindo-lhe uma ferida que nunca cicatrizou: 

“Eta saudade danada a mexer comigo! Sei não. Ficaste preso aí no jazigo. Sei que estás num lugar muito lindo, Pois eras desprovido de ódio e de maldade. Apenas cheio de amor, de boa vontade, Vivendo só de sonhar, sonhar e sonhar.” 

Na magia da inspiração, demonstrando seu imenso lado humano, deu uma lição de profundo significado sobre a desigualdade social:

 “Eu quero um mundo diferente Do mundo de muita gente Que só em riqueza quer pensar.” “Quero um mundo em que a humanidade Combata a desigualdade Com a justiça a imperar.” 

A sua intuição era carregada de muita criatividade. Quando seu genro Falcão, na hora do almoço, elogiando os dotes culinários da sogra Luzinete, deu o mote “O lombo de Luzinete é a minha salvação”, ele assim se pronunciou: 

“Muita gente ali se encostando Não faltava nem mesmo o vinho, Mas pra beber um pouquinho Pra não caminhar tombando Todo mundo degustando As gostosuras da refeição Havendo até repetição Do mais gostoso omelete O lombo de Luzinete É a minha salvação” 

Na transcendência do pensamento, realizou um diálogo com o abstrato, coisa comum às mentes inspiradas, versejando com suavidade e ternura sobre a natureza: 

“Vento, quem és, por onde andas? Te diriges pra que bandas? Por que não podes parar? Vens do Sul? Vens do Norte? Por que a tua sorte É soprar, sempre soprar?” 

Mergulhando no universo da reflexão, idealizou sua viagem após a morte: 

“Algum dia, quando ao morrer, Da matéria então me libertar Irei percorrer o imenso espaço De eternidade a eternidade a voar.” 

Portanto, nesta retrospectiva do tempo, nesta busca do ontem, nesta verdadeira fuga temporária que me consola, pude reencontrá-lo com muita intensidade. 

SAMUEL SALGADO 08 de setembro de 2003

Nenhum comentário:

Postar um comentário