Samuel |
DOIS ANOS SEM PAPAI
UM ORIGINAL SAMUEL SALGADO
Sr. DIOCLÉCIO |
Tenho a desconfortável sensação que lentamente vai se
arrastando esta madrugada nostálgica de 08 de setembro de 2003. Parece não ter
fim. Há uma rotatividade de sentimentos. Como o tempo passou ligeiro! Já se vão
dois anos da morte de papai! O hoje chegou tão depressa que logo, logo vai se
tornar no ontem. Sentado diante do computador começo a digitar as palavras,
juntando pedaços do que foi selecionado pela memória ao longo desse período.
Estou só. Não quero companhia. Neste instante de inevitáveis emoções meus olhos
marejam, retratando, exatamente, o lado perverso da vida. Respiro fundo.
Controlo-me. Voluntariamente, deixo que as lembranças tomem conta de mim. São
recordações que mexem comigo. A dor da sua perda ainda é muito forte. Vou
carregar para sempre a marca indelével dessa dor que não tem tamanho. Assim, lá
vou eu pelos caminhos da vida, enganando a tristeza o quanto
posso, lutando contra a angustiante realidade de sua ausência. Minha alma
chora. Ah! Quanta saudade! A saudade é tão grande que, às vezes, dá a impressão
que o tempo vai voltar. Saudade é reviver o passado. Para tanto, vale qualquer
coisa... relembrar um gesto, um olhar... remexer velhos papéis, fotos antigas,
desbotadas pelo tempo... pedaços de sentimentos... ele gostava tanto de
escrever poesias! Nos momentos de inspiração, recolhia-se ao seu quartinho nos
fundos da casa e, rapidamente, dava um sentido poético na montagem das
palavras. Nessas ocasiões liberava o imaginário, expressava os sentimentos da
alma. Fez versos que enternecem. No seu versejar tratou de temas como a vida, a
dor, enfim externou sua fértil imaginação. Num instante de êxtase poético,
discorreu sobre os caminhos da vida demonstrando toda sua convicção religiosa,
da seguinte forma:
“Esta vida é uma ilusão,
Um passa tempo sem sentido,
Nosso tempo é consumido
Mais da metade em vão
Quando se tem boa intenção
E no futuro tem fé
Mantendo sempre de pé
Um objetivo com firmeza
Pode-se ter a certeza
De que Deus refúgio é.”
Neste verso, manifestou um período, rapidamente superado, em que, durante a velhice, a
angústia habitou sua alma:
“É triste ter longa vida
Pois é de pior a pior
Nada pode vir de melhor
Na vida a ser vivida.”
A morte do neto Juninho, impôs-lhe a marca do sofrimento, abrindo-lhe uma ferida que
nunca cicatrizou:
“Eta saudade danada a mexer comigo!
Sei não. Ficaste preso aí no jazigo.
Sei que estás num lugar muito lindo,
Pois eras desprovido de ódio e de maldade.
Apenas cheio de amor, de boa vontade,
Vivendo só de sonhar, sonhar e sonhar.”
Na magia da inspiração, demonstrando seu imenso lado humano, deu uma lição de
profundo significado sobre a desigualdade social:
“Eu quero um mundo diferente
Do mundo de muita gente
Que só em riqueza quer pensar.”
“Quero um mundo em que a humanidade
Combata a desigualdade
Com a justiça a imperar.”
A sua intuição era carregada de muita criatividade. Quando seu genro Falcão, na hora do
almoço, elogiando os dotes culinários da sogra Luzinete, deu o mote “O lombo de Luzinete é a
minha salvação”, ele assim se pronunciou:
“Muita gente ali se encostando
Não faltava nem mesmo o vinho,
Mas pra beber um pouquinho
Pra não caminhar tombando
Todo mundo degustando
As gostosuras da refeição
Havendo até repetição
Do mais gostoso omelete
O lombo de Luzinete
É a minha salvação”
Na transcendência do pensamento, realizou um diálogo com o abstrato, coisa comum às
mentes inspiradas, versejando com suavidade e ternura sobre a natureza:
“Vento, quem és, por onde andas?
Te diriges pra que bandas?
Por que não podes parar?
Vens do Sul? Vens do Norte?
Por que a tua sorte
É soprar, sempre soprar?”
Mergulhando no universo da reflexão, idealizou sua viagem após a morte:
“Algum dia, quando ao morrer,
Da matéria então me libertar
Irei percorrer o imenso espaço
De eternidade a eternidade a voar.”
Portanto, nesta retrospectiva do tempo, nesta busca do ontem, nesta verdadeira fuga
temporária que me consola, pude reencontrá-lo com muita intensidade.
SAMUEL SALGADO
08 de setembro de 2003
Nenhum comentário:
Postar um comentário