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Enquanto as fogueiras arderem em homenagem ao santo
mais importante da tradição nordestina, sanfona, triângulo e zabumba estarão em silêncio.
No lugar do trio de forrozeiros, a "banda de um homem só" comandará a festa de Caruaru (PE) em 24 de junho, dia de São João. Atrás das suas pick-ups, o DJ Alok, com os seus beats eletrônicos, será a atração principal da capital do forró.
A novidade também chegou em Conceição de Almeida (BA), cidade de 20 mil habitantes do recôncavo baiano. Sob bandeirinhas e balões coloridos, e mediante um cachê de R$ 180 mil, a cantora Anitta transformará o arraial em um baile funk carioca.
A "invasão" de ritmos sem familiaridade com os festejos juninos do Nordeste, incluindo o sertanejo universitário, vem mudando a cara do São João da região. O que por décadas foi uma celebração das tradições da zona rural, aos poucos está se tornando um festival de ritmos variados.
A ameaça ao "São João raiz" provocou a reação de artistas, produtores e admiradores da cultura que ganhou o mundo a partir do trabalho de Luiz Gonzaga (1912-1989). Com a hashtag #DevolvaMeuSãoJoão, eles pedem, nas redes sociais, que xaxado e baião voltem a ser destaque.
"A realidade é que estão silenciando os artistas e aos poucos acabando com a cultura do Nordeste", diz Chambinho do Acordeon, que em 2016 deu vida a um sanfoneiro em "Velho Chico", da Globo. O personagem se deparava com a falta de oportunidades nas festas de São João.
O cantor J. Sobrinho sentiu na pele a perda de espaço. Em 2016, depois de 23 anos de carreira, pela primeira vez não tocou sua sanfona na noite de São João de Feira de Santana (BA). "Fiz uma fogueira e fiquei em casa", conta.
Com mais de 20 discos, o cearense Flávio José também está vendo a agenda de shows minguar a cada ano. Há pelo menos cinco, contabiliza o cantor, eram 25 apresentações em todo o Nordeste -esse ano não passarão de 15.
Sertanejos chegam perto disso. No período entre 15 de junho e 5 de julho, ponto alto das festas, a goiana Marília Mendonça fará nove shows no Nordeste. O cantor Luan Santana fará dez, mesmo número de Maiara e Maraísa.
"Há um desequilíbrio, a grade não pode ser 18 sertanejos e dois forrozeiros, porque não é festa do peão, é São João", diz a cantora Elba Ramalho (leia ao lado).
Atração principal da noite de São João em Campina Grande (PB), Marília Mendonça rebateu: "Vai ter sertanejo no São João, sim". A declaração dada durante um evento privado no Recife gerou um embate com os forrozeiros.
A ciranda continuou com o cantor Alcymar Monteiro. Para ele, Marília "canta para cachaceiros e não tem autoridade para falar nada". Procurada pela reportagem, Marília não retornou.
Alcymar critica as prefeituras, responsáveis por organizar as festas. "Dinheiro de cultura é para cultura. Infelizmente, os prefeitos se venderam a esse modelo econômico perverso que trata o forró como música de segunda."
TRADIÇÃO E NEGÓCIO
O São João se tornou ponto alto da economia das cidades do Nordeste. De maior ou menor porte, acontecem em quase todos municípios da região. As tradicionais são em Caruaru (PE) e Campina Grande (PB). Na Bahia, Amargosa, Cruz das Almas e Senhor do Bonfim dividem o reinado.
A prefeitura de Caruaru estima que 2,5 milhões de pessoas passem pelos 17 palcos onde acontecem mais de 400 apresentações neste mês. Em Campina Grande, hotéis já estão lotados e casas de moradores alugadas para atender a demanda dos turistas.
Diante da proporção que as festas ganharam, as prefeituras defendem a convivência de atrações tradicionais com outros artistas. O objetivo, segundo os gestores, é atrair patrocinadores e garantir a sustentabilidade do São João, que chega a custar R$ 12 milhões por cidade.
"Precisamos ter atrações de sucesso que atraiam mais público e garantam o retorno financeiro. No final, são os grandes artistas que acabam bancando os pequenos", disse o prefeito de Campina Grande, Romero Rodrigues (PSDB).
Presidente da Fundação de Cultura de Caruaru (PE), Lúcio Omena diz que, dos 400 artistas na programação do São João, 75% são locais. Ele defende, porém, que a cidade abrace outros ritmos. "A gente não pode ser inquisidor", diz. Ele conta ter negociado com o DJ Alok para que parte de sua apresentação seja com músicas de forró.
O setor hoteleiro também defende o formato "festival de ritmos variados" para o São João e comemora os bons números em plena crise. Os hotéis de Pernambuco registram quase 90% de lotação.
"As atrações de renome nacional ajudam o setor. O jovem vem para assistir aos shows e os pais o acompanham", observa Eduardo Cavalcanti, vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis em Pernambuco.
LEI LUIZ GONZAGA
Enquanto a discussão perdura, um grupo de artistas prepara um projeto de lei que será levado ao Congresso ainda este ano. A proposta, batizada de Lei Luiz Gonzaga, é que municípios e Estados que não priorizarem os artistas regionais no período junino não recebam verba federal.
Uma lei semelhante, chamada "Lei da Zabumba", foi aprovada na Bahia em 2016, prevendo que pelo menos 60% dos recursos estaduais sejam usados com artistas locais. O efeito prático, contudo, se revelou limitado.
A lei vale só para recursos aplicados diretamente pelo Estado,não se aplica aos convênios com municípios, para onde vai o grosso da verba. Para Paulo Vanderley Tomaz, que há 20 anos pesquisa o legado de Luiz Gonzaga, a lei é uma iniciativa válida. Mas o fundamental é que os gestores que organizam o São João saibam valorizar o forró e as tradições juninas.
"Sem essa consciência, estaremos condenados a perder nossa cultura", diz. Seria um passo atrás. Ou como se diz na quadrilha junina: anarriê.
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